quarta-feira, outubro 06, 2010

Coalescence - Capítulo 03: Uma Fera Bem Vestida

[Alice]

Abracei a mim mesma para conter a queimação dolorosa que aumentava no meu corpo enquanto eu tentava acalmar minha mente enfurecida. As visões não eram nítidas o suficiente para que eu fizesse mais do que ver as chamas e sentir o pânico por não ver Jasper.

Duas visões com desfechos parecidos.

Duas visões sem Jasper.

Duas.

Fechei meus olhos e inalei profundamente numa tentativa de focar minha mente e reprimir minhas emoções.

Duas. Isso significava que era inevitável? Seriam dois futuros diferentes, ou os resultados de uma escolha feita num mesmo futuro?

Eu devia contar para Jasper?

Olhei para aquele futuro novamente, tentando me acalmar o suficiente para compreender o que eu estava vendo. Eu me preparei e abri minha mente. As duas rápidas visões imediatamente passaram num flash, e tentei olhar através das chamas para ver o que havia ao redor delas. Eu ainda não podia olhar para dentro das chamas. Eu conseguia distinguir vegetação ao redor do fogo. Talvez árvores, mas eu não conseguia ter certeza. Se fossem árvores, isso significava que Nova York estava a salvo. Relaxei um pouco e deixei a dor escorrer para fora de mim. Enquanto as visões permanecessem embaçadas, não havia muito que eu pudesse fazer. Eu as tomaria como um aviso, e evitaria as florestas o máximo possível.

Eu devia contar para ele? O que ele iria fazer se soubesse?

Eu não conseguia ter certeza de nada. Dizem que o amor te deixa cego, mas eu estava pior que cega. Eu não tinha experiência com amor, e meu dom me fazia reagir violentamente a coisas que não eram mais do que imagens fantasmagóricas. Meu conhecimento a respeito do futuro não me ajudava compreender o amor. Na verdade, eu estava à mercê do meu implacável dom.

Eu tinha certeza de que Jasper estava atraído por mim, mas eu simplesmente não sabia o quanto. Pensei sobre como Jasper reagia comigo. Vampiros usualmente não permitiam que lhes tocassem, e ele estava disposto a me deixar tocá-lo. Ele gostava disso. Então, no mínimo, isso era algo. Era quase como se algo estivesse forçando Jasper a não responder a mim, como se algo lhe causasse dor quando ele tentasse, mas eu não podia ter certeza. Talvez suas cicatrizes não estivessem apenas no lado de fora.

Pela primeira vez na minha vida, eu estava com inveja de Edward. Ele saberia no mesmo instante se uma fêmea estivesse atraída por ele. Seria tão fácil para ele encontrar sua parceira, e ele saberia de cada necessidade dela, de cada desejo e cada pensamento. Quando ele encontrasse o amor, seria totalmente claro para ele. Isso era tão injusto.

Minha mente passou para as memórias do bando de Paul. O amor deles era tão evidente, tão permanente, uma parte tão intrínseca deles. Marianne disse que o amor era quase instantâneo para os da nossa espécie, e que era sentido por ambas as partes.

Inquebrável, inflexível, não convidado, e instantâneo.

Será que Jasper já havia chegado lá?

Com o pensamento de Jasper, as visões do fogo correram para dentro de minha mente de novo.


[Jasper]

Vesti minhas roupas e me apressei para fora do banheiro, deixando uma trilha de água atrás de mim. Alice estava sentada no sofá com os braços cruzados fortemente ao redor de si mesma. Eu podia sentir a dolorosa queimação de sua perturbação emanando dela. Embora o cômodo estivesse silencioso, ela não me notou. Ela estava intensamente focada no que fosse que estivesse pensando.

“Alice? No que você está pensando?” eu disse suavemente quando me inclinei sobre ela. Ela instantaneamente virou-se para mim, como se tivesse sido surpreendida, mas isso não era possível para a nossa espécie. Eu não havia sido exatamente silencioso na minha pressa de chegar até ela. Seu rosto estava quase tocando o meu.

“Meus velhos amigos,” ela gaguejou.

“Que amigos?”

“O clã de Paul,” ela disse enquanto levantava a mão para tocar minha massa de cabelos molhados. “Você ao menos tentou escovar isso?”

Eu tentei não deixá-la constantemente alterar o foco para desviar minha atenção do assunto. “Você parece chateada.”

“Estou com saudade deles, é só isso,” ela disse enquanto abraçava a si mesma.

“Para onde eles foram? Eu pensei que ele era o líder dos bandos de Nova York.”

Ela tomou um fôlego rápido contra a onda de tristeza e culpa intensa que a atingia. “Eles queriam caçar nos campos de batalha da Europa. Eles morreram lá numa luta territorial.”

A tristeza dela por causa da perda deles era intensa, e eu não conseguia entender. Ninguém lamentava tanto por membros de clãs. Além do mais, ela estava sofrendo, e eu tinha que acabar com isso. Eu lhe enviei paz, e ela pareceu acalmar-se um pouco, mas não foi o bastante. Como se agissem por conta própria, minhas mãos moveram-se para trás dela e começaram a gentilmente esfregar suas costas. Sua reação foi imediata. Ela fechou os olhos e me deixou tocá-la. Qualquer vampiro normal teria tentado fugir.

“Eu sinto muito,” comecei, tentando achar uma maneira de ajudar. “Vocês eram bons amigos?”

“Quase entrei para o bando deles. Eu sinto tanta falta deles. Você teria gostado deles,” ela adicionou.

“Eu sinto muito mesmo, Alice.”

“Nova York não é a mesma sem o dom de Paul e a alegria de Annette. Ivan e Chi-Yang são os únicos dois líderes que restaram. Nós tínhamos vinte e dois antes da guerra entre os bandos. Todos eles foram embora porque não conseguiram permanecer juntos sem o Paul.”

“Ele devia ser incrivelmente talentoso. A maioria dos vampiros não suporta ficar perto um do outro, e para ele ter acumulado um bando de tantos vampiros soltos e já maduros significa que ele deve ter tido uma incrível habilidade de controlá-los. Eu nunca vi um vampiro capaz de controlar os outros assim. Ele devia ter um dom maior até mesmo que o de Maria,” eu disse absorto em pensamentos, e então instantaneamente me arrependi de ter dito o nome dela. Alice também tensionou-se com a menção a Maria. “Você a conhece?”

“Não. Eu tento evitar vampiros poderosos.”

“Não se preocupe. Maria não se atreveria a vir aqui. O que ela almeja está no sul,” assegurei-lhe. Ainda assim, ela parecia irritada com a menção de Maria.

“O que ela era sua?” Sua pergunta foi direta, e me pegou desprevenido.

Eu me enrijeci enquanto memórias dolorosas aceleraram-se e preencheram minha mente. Eu sabia que meu rosto mostrava minha raiva. “Ela foi minha criadora. Eu pensava que ela fosse minha amiga e… amante.” A palavra se retorceu na minha boca e saiu como um sibilo. “Ela não fez nada a não ser tirar minha vida e me alimentar com mentiras e morte.” Eu podia sentir o ódio se expandindo dentro de mim e minha face se contorcer por causa dele. Lutei contra as memórias para encontrar as palavras exatas.

Acabou que eu não precisei fazê-lo. Quando sentiu minha dor, Alice me enviou conforto e então levantou suas mãs e estendeu-a mim. Eu me encolhi das duas.

“Está tudo bem, Jasper,” ela sussurrou. Muito lentamente, ela levantou sua mão novamente e começou a correr as pontas dos dedos gentilmente pelo meu cabelo embaraçado. Eu congelei, encarando ela, sem ter certeza do que fazer. Ela simplesmente continuou a desembaraçar meu cabelo cheio de nós com as pontas dos dedos até que ele começou a se alisar e se assentar.

Meu coração formigou. Não, não formigou, era mais do que isso. Seus dedos faziam com que minha pele de alguma forma se sentisse viva. Assim como sua mão havia dado vida à minha, agora seus dedos faiscavam aquela energia sobre o meu couro cabeludo.

“Deixe-me terminar a história da minha vida,” ela disse baixo enquanto se levantava e caminhava para trás de mim. Eu me segurei para permanecer parado. Eu nunca permitia que ninguém ficasse atrás de mim, nem mesmo Maria. Nunca.

Mas quando ela começou a pentear o resto dos meus cachos embaraçados, a sensação normal de auto-preservação não me dominou. Era desconfortável ficar sentado com ela em pé atrás de mim, mas enquanto seus dedos massageavam meu cabelo, eu comecei a relaxar. Pela primeira vez na minha vida, alguém da minha espécie ficava parado atrás de mim, tocando-me, e eu me sentia seguro. Era uma sensação surreal.

Ela começou a me contar sobre a sua vida de novo, e o relaxamento quente se espalhou pelo meu corpo. Finalmente, eu resolvi correr o risco, e me reclinei contra o encosto do sofá. Seus dedos começaram a fazer redemoinhos no meu couro cabeludo, e eu percebi que ela estava brincando com o meu cabelo. Era completamente bizarro, mas a sensação era incrivelmente boa.

Olhei para fora da janela para ver uma grossa neblina passando sobre a cidade. Eu simplesmente escutei por algum tempo. Ela falou da faculdade e dos humanos com quem ela fez amizade. Tentei permanecer relaxado, mas eu simplesmente não consegui me manter calado após ela descrever aquela garota Emily para mim.

“Ela não tinha medo nenhum?”

“Não. Era tão estranho, mas bom ao mesmo tempo. Eu amava tê-la como amiga, apesar de odiar o cachorro dela.”

Aquilo já foi demais. Eu me sentei e a encarei. “Cachorro?”

“Ele era demoníaco.”

“Disse a vampira.” Eu podia sentir meu sorriso crescendo.

“Aquela peste destruiu vários pares de meias e não foram poucas saias. A coisa era o ser mais destrutivo da Terra,” ela disse bufando.

“Qual era o tamanho da ‘coisa’?” Perguntei, curioso agora do porque um cão iria incomodar um vampiro. Ela levantou as mãos num círculo estranhamente pequeno. Eu apenas olhei para ela.

“Não era o tamanho que importava. Era a atitude,” ela disse defensivamente.

Eu podia sentir a risada se formando, mas mantive minha compostura. “Por favor continue,” eu disse educadamente antes de me virar de costas de novo. Tinha a sensação de que isso seria mais fácil se ela não pudesse ver meu rosto.

Eu me recostei de novo, deliciando-me com a sensação da minha recém-descoberta confiança e apreciando o toque das pontas dos dedos dela.

Foi difícil manter a postura enquanto ela continuava. Não havia nada normal a respeito do passado dela, e pela segunda vez na minha vida, eu ri livremente das suas peripécias. O som da minha risada a alegrava, e, de várias maneiras, isso me surpreendia. Eu havia desistido de rir há tanto tempo.

“… flores subiam por todo o espaço até o topo da igreja. Mal havia lugar para o noivo e a noiva, e até mesmo o padre teve que oficializar em pé sobre as folhagens. Eu queria que você tivesse visto o casamento dela,” suspirou Alice.

“Então foi Emily que te levou até mim?”

“Sim. Minha amizade com ela foi a chave para encontrar você.”

“Isso é estranho,” eu disse, tentando visualizar a estranha mulher.

“Isso é maravilhoso,” disse Alice. “Você está pronto para ir fazer compras?”

Ela estava brincando? “Não.”

Ela inclinou a cabeça para o lado e me olhou de forma desfocada. “Não seja bobo,” ela falou após uma pausa. “Vai correr tudo bem. Nós só vamos comprar alguns itens e só estaremos fora por algum tempinho.”

Pensei a respeito. Eu queria estar com ela, e eu queria isso tanto o suficiente para passar o dia entre humanos. Entretanto, alguma coisa nos olhos dela me dizia que “algumas” e “tempinho” não eram declarações verdadeiras.

“Eu acho que devemos ir com calma. Fazer compras dentre humanos parece ser um passo perigosamente grande.”

“Por favor, Jasper, deixe-me levá-lo para comprar algumas roupas novas.” Ela estendeu o lábio só um pouco enquanto fazia um bico. Havia algo na aparência dela que fazia com que eu a quisesse fazer isso.

“Apenas algumas coisas e por algum tempinho?”

“Eu prometo,” ela disse com uma risada. “Apenas espere eu me trocar.”

De novo?” eu exclamei. Ela apenas riu de mim e voou pelo corredor até o seu quarto.


[Alice]

Eu não conseguia tirar a imagem de Jasper recostado no sofá da minha cabeça. Ele havia me deixado tocá-lo, e foi uma sensação tão boa. Eu amava vê-lo relaxar um pouco; era como se o mundo todo tivesse se levantado de cima dele, e seu rosto tornava-se ainda mais bonito com a sua confiança.’

Deixei escapar um suspiro frustrado e me atirei de volta para a cama. Eu não merecia a confiança dele. Eu havia falado a noite toda, mas não havia dito nada importante. Eu não lhe disse sobre o meu dom ou sobre as visões que me assombravam. Eu não lhe disse sobre as chamas.

Eu queria quebrar algo, mas ao invés disso optei por trocar de roupa e colocar um vestido de seda com um decote bem profundo. Colocar um vestido adorável melhorava meu humor, e quando eu emergi do meu quarto, eu estava quase dando pulinhos por causa do dia. Jasper olhou duas vezes quando me viu, e a alegria de vê-lo me inundou uma vez mais, levando embora parte do meu nervosismo. Ele cheirava a côco e sabão, e floresta e especiarias.

Quando eu estava na presença de Jasper, todas as preocupações sobre as visões pareciam estar longe, e eu me sentia tão segura que elas pareciam quase bobas. Havia uma força silenciosa em Jasper. Eu percebi que eu nunca havia me sentido totalmente segura até agora.

“Olá, Sr. Whitlock,” eu disse. “Você se importaria de me escoltar até as lojas?”

Sua boca moldou-se em seu inacreditável meio-sorriso, e ele estendeu o braço para mim. Eu estava quase tremendo de excitação quando segurei o braço de Jasper e saí para fazer o que eu fazia de melhor.

Nós saímos às oito da manhã, para caminhar na neblina até as primeiras lojas que iríamos visitar. Não eram lojas às quais eu nunca havia ido, mas eu sabia que essas lojinhas, localizadas na Quinta Avenida, eram onde Vasily e Ivan faziam compras. As primeiras lojas ficavam ao leste e sul das ruas. Nós só tínhamos até as 11 antes que a neblina sumisse, e eu queria terminar as áreas ensolaradas primeiro.

Eu sempre ficava feliz fazendo compras, mas a idéia de que eu estava fazendo compras para Jasper era profundamente satisfatória. Eu queria cuidar dele e me certificar de que ele tivesse tudo de que precisasse. Eu queria comprar-lhe o mundo.

É claro que o que eu achava que ele precisava e o que ele achava que precisava eram duas coisas bem diferentes.

A primeira loja tinha uma porta de madeira magnificamente trabalhada e um forte cheiro de lã. Ao tilintar do sino, o vendedor veio dos fundos da loja, e nos olhou de queixo caído. Eu estava usando um vestido de organdi justo com decote baixo que havia feito Jasper parar por um instante quando eu apareci. Este cara estava quase prestes a desmaiar.

“Não se preocupe conosco,” eu disse acenando a mão. “Nós só estamos dando uma olhada.” O homem desgrudou os olhos arregalados de mim e os passou para Jasper. Ele engasgou e quase mergulhou atrás do balcão para buscar segurança.

A loja tinha principalmente roupas masculinas e camisas de bons tecidos. Eu me virei sorridente para Jasper, que me olhou como se eu fosse insana.

“Você gostaria de algumas dessas? Elas são mais formais do que o que você está usando agora, mas fariam você ficar muito elegante.”

“Eu não sou elegante.” Seu rosto estava cravado em pedra.

Suspirei e passei para algumas camisas casuais e suéteres. Ele ficou parado lá, tenso e incomodado enquanto eu levantava várias peças para ver de qual ele gostava.

“Qual você prefere, azul ou borgonha?”

“Eu não prefiro.”

Eu escolhi dois que eu gostei.

“Jasper, eu preciso saber que tipo de roupa você gostaria de vestir para que assim a gente economize tempo procurando,” pressionei.

Ele me olhou com um bico infeliz e disse, “Eu gosto de roupas com as quais possa correr e caçar. Esses suéteres vão enroscar em galhos de árvores, e a maioria dessas calças não duraria tempo o suficiente para valerem a pena.”

Está bem. Eu reprimi um suspiro frustrado. “Que tal essas camisetas de poliéster? Elas são bem resistentes.” Ele me olhou como se eu o houvesse machucado.

“Alice, eu acho que nós precisamos discutir a definição da palavra ‘algumas’?”

“Jasper,” arrulhei, “você precisa de roupas, e essa é uma loja muito fina. Nós podemos ir em outras hoje, mas eu realmente acho que você vai gostar de roupas como essas se prová-las.”

Ele dobrou os braços e olhou para o teto antes de falar. “Quantas você quer dizer quando diz ‘outras’? Eu só preciso de umas doze calças por ano, se não menos.”

“Então nós vamos compras as doze agora para que você já as tenha. Se bem que, eu aposto que seria útil se você tivesse algumas a mais.”

“Você disse ‘algumas’ de novo.”

Eu suspirei. Isso estava mais difícil do que eu pensava. “Se você gasta tantas calças e camisas, por que nós não as compramos em Nova York? Aí você não vai precisar ser tão seletivo quanto o tamanho e coisas do tipo quando caçar. Se você tomar conta das suas roupas, elas irão durar bastante tempo.”

Seus lábios se estreitaram quando ele sibilou, “Eu não tenho muito dinheiro. Nós vamos roubar tudo isso?”

“São meus presentes para você,” eu sorri. “Eu tenho bastante dinheiro comigo, e ainda mais no banco.”

“Isso não está certo,” ele disse, soando ofendido. “Eu não quero tirar muito dinheiro de você.”

“Oh, isso não é nada de muito, acredite. Amo fazer compras, e eu realmente amo poder comprar coisas para os outros. Não estrague isso para mim.”

“Eu acho que se você comprou flores para um casamento e uma casa para uma amiga, isso não deve parecer nada demais. No entanto, isso parece extravagante para mim. Roupas simplesmente não são uma das minhas preocupações. Ninguém nunca ligou para o que eu visto.”

“Bom, eu ligo. Além do mais, eu realmente amo fazer compras. Deixe-me fazer isso por você, por favor. Eu prometo, eu deixarei você me recompensar.”

“Ainda assim não parece direito,” ele resmungou. Ele parecia estar tão desconfortável que eu tive que dar uma risadinha.

“O quê foi?” ele perguntou frustrado.

“Você está agindo como se essa fosse uma experiência dolorosa.”

“Acredite em mim, é sim,” ele sibilou.

“Bem, eu não me divirto assim há décadas. Relaxe e me deixe lhe encontrar algumas coisas bacanas para vestir. Por favor?”

“‘Algumas.’ Você falou de novo. ‘Algumas’ para mim é um punhado. Poucas. Menos que duas dúzias. Eu não vejo mais como escapar desse dia com ‘algumas’ coisas.” Ele cruzou os braços e me fuzilou com o olhar. Eu dei um sorriso em retorno. Ele já me conhecia tão bem.

“Relaxe,” eu cantarolei e peguei uma grossa camisa de denim da prateleira. “Está vendo? Essa é perfeita para você. Nós podemos encontrar mais algumas como ela, e então roupas não serão mais um problema.”

Ele permaneceu parado como pedra, com seus braços cruzados. Como ele podia odiar isso tanto assim?

“Eu não estou te pedindo para parar de caçar.” Ainda. “Tudo que estou te pedindo é para você me deixar te dar essas.” Por agora. “Nós só podemos fazer compras por algu… poucas horas, de qualquer forma. Eu só quero que você tenha algo que seja seu. Está vendo? Não é demais, e você não precisa mudar nenhuma parte da sua vida para usar calças novas.” Mas é um começo.

Por um segundo, eu pensei que ele fosse discutir, mas ele simplesmente deu de ombros e me deixou passar a camisa para ele.

Nós saímos 20 minutos depois com uma sacola cheia.

A maioria das camisas não precisaria de ajustes, apesar de que eu odiasse a idéia de ele só vestir coisas não-ajustadas, mas talvez fosse melhor assim. Ajustes demais poderiam fazê-lo perder a paciência. Além do mais, ele gostava de roupas práticas, e não quis as jaquetas esportivas e casacos que eu lhe mostrei.

Prossegui até a próxima loja a duas quadras de distância. Jasper precisava de sapatos; pelo menos três pares de sapatos. Ele parecia uma gárgula sentindo dor quando um humano apavorado mediu o tamanho do seu pé. Seu rosto estava tão enfurecido que o humano estava tremendo excessivamente para tirar as medidas de Jasper. Eu acabei tendo que ajudar.

“Apenas traga os pares que eu pedir, e eu vou ajudá-lo com eles,” eu ordenei ao jovem garoto que tremia. Escolhi uma dúzia de sapatos de estilos e funções variadas enquanto Jasper me observava com um olhar duro.

“Eu só uso sapatos quando preciso, e eu não consigo usar mais de um par de cada vez. Por que eu precisaria de mais de um par?”

“Você não precisa,” concordei, “mas tê-los por perto vai ser prático. Além disso, e se um par ficar molhado?”

“Eu vou descalço. Meus pés são muito mais fortes do que qualquer um desses sapatos.”

“Sim, mas aí você vai se sujar e as barras da sua calça vão ficar gastas.”

“Ugh! Deus me proteja de gastar minhas calças! Ok, me escolha um par de botas. Contente?”

“Isso pode não ser o suficiente.”

“Eu não posso acreditar nisso,” ele choramingou para o teto, olhando para os céus por ajuda.

“Ninguém lá de cima vai te ajudar,” provoquei. “Relaxe. De novo. Por favor. Vamos comprar só dois pares de cada estilo para você, e aí você vai estar bem preparado.”

Jasper se jogou com força contra o encosto da cadeira, rachando a madeira. “Ok,” ele rosnou alto.

Dois clientes alarmaram-se com o barulho e recuaram quando ouviram o rosnado.

“Cuidado. Você vai assustar os outros clientes,” eu sibilei para ele.

“Normalmente, eu iria jantar os outros clientes,” ele disparou de volta.

Ele parecia um bebê enorme sentado lá numa cadeira quebrada com os braços cruzados, e no seu rosto uma tentativa de aprender a fazer biquinho. Eu ri apesar de tudo.

“Isso é engraçado?”

“Bem, um pouco. Eu nunca pensei que comprar sapatos pudesse ser uma fonte de tanto tormento. “

“Você não faz ideia,” ele disse obscuro.

“Quanto mais você brigar, mais tempo isso vai levar.”

“Isso era o que eles diziam também, durante a Inquisição,” ele resmungou.

Ele levou quase meia hora antes de, emburrado, escolher quatro pares de sapato e sair da loja a passos largos. Ele me agradeceria mais tarde.

Na terceira loja, ele estava quieto e aparentemente resignado com o seu destino. Ele simplesmente ficou parado enquanto eu lhe passava várias calças e bermudas. Então ele caminhou cabisbaixo de volta para provador e as experimentou para eu avaliar.

“Você age como um santo martirizado,” eu disse frustrada.

“Por que será?”

“Comprar calças não é uma forma de punição, Jasper. É normal.”

“Não é o ato de comprar roupas que me incomoda; é a enorme quantidade de tempo e a montanha de peças. Você tem noção de que isso é o bastante para me manter vestido por no mínimo um ano,” ele protestou. Ele tinha agora seis pares de calças sociais e bermudas. Essas exigiriam minha experiência para serem apropriadamente ajustadas.

“Só se você tomar boa conta delas. Certifique-se de só caçar com as calças pesadas de sarja e as camisas de poliéster. Essas vão durar algum tempo, mas só se forem limpas e lavadas.”

“Lavadas? Você está falando sério? Você lava suas roupas?”

“Bem, não, não exatamente. Mas eu lavei algumas vezes no passado. É bem tedioso, então agora eu mando para lavar fora, especialmente as peças mais delicadas. Eu simplesmente mando as roupas do dia-a-dia para doação quando já as usei o suficiente, e compro mais.”

“Eu pensei ter ouvido você dizer que só fazia compras quando precisava.” Sarcasmo de novo.

“E é isso sim. Eu preciso com uma certa frequência.” Dei um sorriso, sabendo simplesmente o quanto minhas necessidades me dominavam. “Eu gasto as roupas rápido mesmo quando sou cuidadosa. Além disso, a moda muda tão rápido que eu preciso comprar bastante coisas.” Ele rolou os olhos para mim. “Será que há alguma coisa que você iria gostar de comprar?” perguntei. Subitamente percebi que eu não havia nem ao menos lhe perguntado o que ele queria.

Ele apenas bufou e levantou as sacolas enquanto saíamos.

“Onde exatamente você está pensando em colocar tudo isso?”

Isso era de fato um problema.

“Bem, eu tenho algum espaço no meu closet e um pouco nas minhas gavetas,” se eu jogasse algumas peças fora. “Nós podemos deixar a maioria das coisas no carro por enquanto.”

Ele me lançou um olhar incrédulo. “O carro? O porta-malas está cheio de coisas suas. Onde nós colocaríamos essas coisas no seu carro?”

“Banco de trás?”

“E quanto às outras coisas? Você disse que está se mudando para New Hampshire. Onde você vai colocar o resto das suas coisas?”

“Vamos nos preocupar com isso apenas mais tarde. Tenho certeza de que nós podemos arrumar espaço,” eu disse, não acreditando em uma palavra do que eu tinha acabado de dizer.

Por volta das onze, nós estávamos com seis grandes sacolas de roupas novas para Jasper. Eu havia até comprado discretamente algumas cuecas para ele. Eu não sabia como ele se sentiria a respeito disso, mas talvez ele não se importasse, dado que elas estavam enfiadas ao lado das meias. Por sorte, ele iria simplesmente aceitar que agora ele tinha algumas que serviam. Eu tive um calafrio ao me perguntar se ele já havia alguma vez vestido uma. Roupas de homens mortos era uma coisa, cuecas de homens mortos eram outra completamente diferente.

Eu precisava agora decidir rapidamente o que fazer, porque o sol estava começando a irromper através da neblina. Nós precisávamos ir rapidamente para casa pela extremidade norte da rua, ou gastar duas horas longe do sol do meio dia. Eu estava desesperadamente tentando pensar em qualquer coisa que eu pudesse comprar para ele que ele fosse gostar, quando a lembrança dele lendo numa biblioteca me deu uma idéia.

Havia uma livraria gigante ao norte do prédio três quadras para baixo.

“Você se importaria se nós fôssemos em uma livraria? Eu bem que gostaria de alguns romances novos.”

Pela primeira vez em todo o dia, o olhar aborrecido desapareceu do seu rosto. “É uma livraria grande?”

“Sim, e tem alguns livros antigos maravilhosos também,” eu disse, tentando não sorrir convencidamente.

“Eu nunca estive em uma. Eu costumava sentar na biblioteca do meu avô durante horas e ler. Ele era um ministro e tinha mais livros do que qualquer outra pessoa que eu conhecia,” ele sorriu. “Sabe que isso na verdade não iria doer.”

“Que bom,” eu disse suspirando aliviada. “Já era hora de você aproveitar tudo isso.”

“Eu não disse nada a respeito de ‘aproveitar’. Eu disse que não iria doer.”

Eu me recusei a lhe responder.

Nós descemos a rua rapidamente e fizemos um caminho pela sombra dos prédios para o sul. Jasper abriu a porta da livraria lotada para mim, mesmo com as mãos carregadas. Ele podia ter sido um soldado e assassino, mas ele era cem por cento um cavalheiro sulista.

Ele se enrijeceu assim que nós entramos, e assisti a emoção sumir do rosto dele e ser substituída por uma tensão estranha. Ele havia se comportado assim em cada uma das lojas, e a princípio eu havia pensado que era porque estávamos fazendo compras. Agora eu havia me dado conta de que era por causa do quão próximo ele estava dos humanos. Ele era tão cheio de vida quando estava comigo, mas perto dos humanos ele mal demonstrava qualquer emoção que fosse. Devia ter sido algo no seu passado que o havia feito travar quando estava perto das pessoas.

Ele olhou ao redor, e seu sorriso retornou. A livraria tinha dois andares, e cada superfície imaginável estava coberta de livros. Grandes placas pintadas à mão estavam penduradas nas prateleiras para guiar os clientes, mas as pessoas que estavam ali pareciam ignorá-las. Cada humano estava ocupado vasculhando as prateleiras com as cabeças inclinadas para o lado e uma expressão imaginativa e feliz nos rostos. Essa expressão agora espelhava-se no rosto de Jasper. Senti uma enorme vontade de ir até o dono e fazer uma oferta para comprar o lugar.

“O que você quer ver?” eu perguntei. Jasper apenas ficou parado lá e continuou a absorver tudo.

“Tudo,” ele disse e caminhou em direção à sessão de livros raros para vasculhar. Eu fiquei parada observando-o, enquanto ele gentilmente pegava livro após livro. Ele se virou para olhar para mim. “Se eu estiver demorando muito, nós podemos ir.”

“Nós não podemos sair até pelo menos duas da tarde, então você tem tempo de sobra. Eu ainda nem escolhi os meus.” Ele concordou com a cabeça e sorriu. Senti uma enorme onda crescente de alegria, sabendo que eu havia finalmente o feito feliz.

“Você é a pequenina que gosta de livros de bolso, certo?” perguntou a dona da loja. O dono, um homem de cabelos brancos e sua esposa, estavam acostumados a me ver entrar ali com intervalos de alguns meses. Eles eram bons no negócio, e se lembravam de todos os seus clientes. A mulher estava sorrindo para mim por trás de seus óculos de leitura, encaixado precariamente na ponta do seu nariz de batata. Ela me lembrava das fotos da mulher do Papai Noel que eu havia visto uma vez numa vitrine.

Eu ri. “Sim, baratos e picantes. Essa sou eu.”

“Nós temos alguns novos romances que chegaram, duas novas séries de mistério e é claro, alguns de faroeste. Você gosta de Zane Grey e Agatha Christie, certo?”

“Obrigada,” eu dei um aceno enquanto vagava até minha parte favorita da livraria. Várias senhoras abriram espaço para mim quando eu me juntei a elas na seção de livros de bolso. Eu e Jasper tínhamos gostos opostos para livros.

Eu escolhi quatro romances, e me acomodei numa cadeira gasta para ler. Eu teria facilmente terminado um dos livros em uma hora, mas eu não conseguia tirar os olhos do vulto ágil de Jasper, que folheava centenas de livros. Ele vinha de tempos e tempos para ver comigo se era hora de ir, mas eu não estava com o mínimo de pressa. Assisti-lo fazer algo de que gostava era completamente fascinante.

Por volta das três e meia, ele havia escolhido dez livros. Ele tinha selecionado um atlas antigo, dois livros sobre grandes filósofos alemães, um sobre causas e consequências da Guerra Civil, alguns sobre história mundial e dois sobre mitologia grega. A dona da loja apenas deu um sorrisinho enquanto colocava os livros numa sacola reforçada. “Vocês têm gostos muito diferentes,” ela disse enquanto colocava meus romances baratos por cima.

“Sim. Nós temos,” respondeu Jasper com um pouco de firmeza demais.

“Você sabe o que eles dizem, ‘os opostos se atraem’”, riu a mulher. Jasper apenas olhou para ela enquanto eu sorri, e pegou nossa sétima sacola.

“Você realmente se divertiu hoje, não?” Ele soava incrédulo.

“Sim, realmente me diverti hoje. Na verdade, eu amei.” Tentei deixar meu sorriso mostrar-lhe o quanto eu estava sendo sincera. Comprar roupas e livros para Jasper me fazia sentir tão realizada. Eu tinha lhe dado o que ele precisava, mesmo que ele não quisesse.

“Sabe, você é maravilhosamente boa com esse negócio de luz do sol,” admirou Jasper enquanto voltávamos para o apartamento.

“Eu tenho feito isso por algum tempo. Odeio ser ter que ficar do lado de dentro por causa do sol.”

“Como você fez para ir para a faculdade? Não é ensolarado em Pittsburgh?” ele perguntou enquanto abria a porta do prédio para mim. “Estava ensolarado em todas as vezes que eu a visitei.”

Eu quase esqueci de andar.

“O que você disse?” Eu engasguei.

Ele me olhou estranhando. “Eu disse que Pittsburgh é ensolarada.”

Caminhei automaticamente em direção ao corredor. Jasper seguiu, parecendo confuso.

“Eu vivi em Pittsburgh por quatro anos e nunca soube que você esteve lá.” Visões estúpidas. Visões estúpidas, erráticas e inúteis.

“Eu fiquei na Costa Leste depois que a guerra começou. A primeira vez em que eu vi a cidade foi logo depois de Pearl Harbor. Eu comi lá perto.”

Apertei o botão do elevador automaticamente enquanto minha mente corria em círculos febris. Eu o havia visto. Eu o havia visto se alimentando em algumas visões, e ele havia estado próximo o suficiente para que eu o encontrasse. Minha visão havia me mostrado, mas eu havia assumido que ele estava em algum lugar distante. Uma raiva irracional cresceu dentro de mim.

“Você está brava por eu ter comido lá?” ele perguntou obviamente confuso. Subitamente, seus olhos arregalaram-se, “Não era algum conhecido seu, era? Me diga que eu não matei um dos seus amigos,” ele implorou. Eu me senti instantaneamente culpada. É claro que ele iria passar para aquela conclusão. Minha reação havia sido irracional para mim, então para ele deve ter sido desconcertante.

“Não. Não, você não fez nada de errado. Estou brava porque você estava tão perto,” eu disse enquanto tentava controlar minhas emoções desgovernadas. Respirei fundo, e me acalmei. “Isso foi há sete anos atrás. Sete anos durante os quais eu poderia tê-lo conhecido. Eu só estou brava por nós termos nos desencontrado.”

“Você poderia não ter gostado de mim naquela época,” ele disse baixo.

“Quantas vezes você voltou para Pittsburgh?”

“Seis. Eu havia estado em Philly três outras vezes antes de nos conhecermos. Eu cacei pelos estados do leste, passando longe das cidades ocupadas por bandos. Nenhuma das cidades foi reivindicada. Se te faz se sentir melhor, eu desejava ter te conhecido naquela época também.”

O elevador atingiu o meu andar e eu caminhei até a minha porta e a destranquei. Sete anos de solidão poderiam ter sido prevenidos se minhas visões tivessem funcionado como deveriam. Eu me peguei odiando o mesmo dom que havia me ajudado a encontrar Jasper. Por que esse dom não podia ser confiável? O que havia de errado comigo que essas visões não haviam permitido que eu o encontrasse antes?

“Alice?” A preocupação na sua voz me trouxe de volta. Eu estava sendo infantil, claro.

“Estou bem, Jasper. Eu apenas tenho estado muito solitária, e saber que você havia estado tão perto é um pouco frustrante.” Coloquei as sacolas no chão e comecei a vasculhar as roupas. Ele tinha um suéter vinho de botões que cairia bem com a nova camisa castanha e calça marrom.

“Estou sendo sincero, Alice. Se eu soubesse que você estava lá naquela época, eu teria procurado pela cidade inteira até tê-la encontrado. Eu teria procurado por todo o mundo.” Ele estava em pé logo acima de mim, e as palavras suaves foram trazidas para mim como uma brisa quente.

Ele teria procurado por todo o mundo. O mundo. Minha mente girou com as palavras dele e o calor sem chamas aumentou em meu corpo. Ele teria procurado por mim. Ele me queria. Uma crescente onda de amor correu por dentro de mim enquanto eu absorvia suas palavras. Eu era desejada. Minhas dúvidas evaporaram-se, mas minha coragem não cresceu para preencher o espaço que elas liberaram. Eu fiquei sem fala enquanto o sorriso dele se alargou. Era como se ele estivesse lendo a minha mente e entendendo o quanto as palavras dele significaram para mim. Ele hesitantemente esticou o braço e gentilmente tocou minha bochecha.

“Essas são para mim?”

“O quê?”

“As roupas. Essas roupas são para eu vestir?”

“Ah, oh, sim. Eu vou fazer um ajuste na cintura antes de sairmos.”

“Há algo mais que precisamos fazer?”

Eu era capaz de pensar em tantas coisas para fazer com Jasper nas próximas duas horas. Entretanto, me preparar estava no topo das minhas prioridades. Pelo menos era isso o que eu estava tentando dizer a mim mesma.

“Depois que eu terminar, nós podemos pentear seu cabelo para trás com gel, e eu preciso me arrumar,” eu fui fazendo a lista enquanto minha irritação com Ivan crescia. Encontrar mais vampiros estava rapidamente se tornando pouco importante enquanto a lembrança dos dedos dele fazia minha bochecha formigar.

“Eu acabei de lavar ele, por que eu preciso passar gel?”

“É como se penteia o cabelo dos homens,” eu disse. Certamente ele sabia disso.

“Nós costumávamos passar gel no cabelo quando eu era um garoto humano, e eu odiava.” Pelo olhar no rosto dele, ele estava disposto a lutar.

“Eu vou precisar penteá-lo de novo.” Eu tentei passar o dedo pelas mechas frisadas e despenteadas que estavam ameaçando ficar em pé. “Por que você não gostava quando era um garoto?”

“Eu não gostava que ninguém penteasse meu cabelo porque ele é naturalmente um pouco rebelde. Eu quebrei muitos pentes. Naquela época nós usávamos banha para fazê-lo se assentar. Cheirava mal e ela derretia na sua cara nos dias de calor. Nós não tínhamos xampus como os seus naquela época, e aquilo ficava no seu cabelo por semanas.”

“Você usava banha de porco?” Eu fiz uma careta quando ele concordou com a cabeça. Não me admirava que ele não quisesse passar gel no cabelo. Eu decidi não pressionar muito. Eu já havia forçado garganta abaixo bastante civilidade nele por hoje.

“Vou terminar de ajustar essas em um instante,” eu disse agarrando as calças e o kit de costura. Jasper me observou fascinado enquanto eu cortava as antigas costuras laterais e diminuía suas calças. Ele era realmente magro, e eu me perguntei de novo se ele havia sido mal-alimentado.

“Jasper, quando você foi transformado?” eu perguntei baixo. Não olhei para ele, e eu não tinha certeza se ele ia responder. Seu passado era um assunto amargo, para dizer o mínimo.

“Durante a Batalha de Galveston, em 2 de janeiro de 1863. Eu estava tentando evacuar os civis da área quando Maria me transformou. Eu era um Major e era o responsável pela evacuação, e os vampiros estavam se alimentando dos refugiados e dos soldados feridos. Eu era um bom lutador, e Maria estava sempre procurando por novos soldados para o seu exército. Pensei que ela e o seu bando fossem mulheres refugiadas, e eu parei para ajudá-las. Em retorno às minhas boas intensões, ela me deu a morte e o fogo.” Sua voz me deu arrepios. Ela não estava triste ou zangada, estava morta. Ele pronunciou as palavras sem nenhuma entonação ou emoção. Era quase como se não restasse nenhum sentimento.

“Você estava curiosa a respeito da minha idade?”

“Bem, um pouco. Eu estava pensando o que você estava fazendo quando foi transfomado. Estava pensando se você estava feliz e bem alimentado.”

Ele riu com frieza. “Nenhum dos dois. Eu era muito bom em ser soldado, e era um bom líder, mas era uma vida dura e terrível. Nenhum de nós havia comido havia vários dias, e mesmo quando comemos nossas refeições não eram muito mais do que carne de porco seca e sopa aguada. Eu estava sempre exausto, tanto físico quanto mentalmente. Assisti vários dos meus homens morrerem em combate. Guerras nunca são como nas histórias. Eu não consigo imaginar que o inferno seja muito pior.” Seus olhos fixaram-se nos meus dedos, que costuravam com agilidade. “Desde que fui transformado, eu tenho estado bem-alimentado, mas nunca feliz. Eu vivi com nada a não ser mentiras e morte por tempo demais.”

Eu me levantei e lhe passei as calças. Então retorci uma mecha solta do seu cabelo e sorri para ele, porque eu não conseguia pensar em nada para dizer. Ele não olhou para mim, mas pegou o resto das roupas e foi até o meu quarto se trocar. Tomei um momento para me recompor. Eu queria tanto melhorar as coisas para ele, e fazê-lo tão feliz quanto ele me fazia, mas eu não sabia como. Mas quando ele saiu do quarto, ele estava sorrindo para mim.

“Você está fabuloso, quer você queira ou não,” eu disse triunfante. Ele estava absolutamente maravilhoso com a roupa ajustada corretamente. O suéter estava fazendo o dourado dos seus cabelos brilhar.

“Ninguém jamais havia feito coisas assim por mim. Obrigado,” ele disse com sinceridade.

Eu peguei sua mão e girei sob ela. “Está vendo, não é tão ruim ganhar presentes e ter suas próprias coisas, é?”

Ele sorriu enquanto me observava dar piruetas embaixo do seu braço. “Você sempre age tão feliz?”

“Eu não ajo feliz. Eu sou feliz, pelo menos na maior parte do tempo.”

“Como você fica assim dessa maneira?”

“Acho que não tenho nada com o que ficar triste.”

“Você é muito afortunada.”

“Você está feliz?” As palavras saíram antes que eu as pudesse impedir. Eu queria tanto fazê-lo feliz, mas ele era tão difícil de ler.

“Eu acho que estou, sim,” ele riu.

Acha que está?” eu retorci meu rosto num biquinho.

“Está bem. Sim, eu estou feliz. Aqui com essas roupas novas que eu comprei numa loja, eu estou feliz.”

Eu continuei a girar sob o braço dele. “Dança comigo?”

“Eu não sei como.”

A afirmação me paralisou.

“Você nunca dançou?”

“Não desde que eu era um garoto. Nós dançávamos danças folclóricas com violinos e violões. Não me lembro de nenhuma delas. Nunca havia um motivo para dançar.”

“Se eu te ensinasse, você dançaria comigo?” Segurei meu fôlego.

Ele riu abertamente, mas não foi um som feliz. “Eu não acho que eu deva ser nada bom nisso. Acho que você poderia encontrar um parceiro de dança melhor do que eu.”

Isso é um não? Algo me dizia que não era, mas eu não conseguia ter certeza.

“Acho que não. Não consigo pensar em ninguém com quem preferiria dançar.” Ele olhou para mim, mas não disse nada. “Eu sou uma boa professora, e acho que faríamos uma boa dupla, mas não precisamos nos preocupar com isso esta noite.” Meu coração afundou um pouquinho.

“Eu… estaria disposto a aprender. Talvez numa outra hora, quando não tivermos planos.” Captei uma pontada de incerteza na voz dele. Eu não sabia a respeito do que ele estava incerto – a dança em si ou me tocar.

“Vou me embelezar e volto em um piscar de olhos,” eu disse. Ele estava certo, nós tínhamos sim um lugar para ir. Rapidamente ajeitei o meu vestido e coloquei jóias combinando e sapatos de salto alto, e tentei não pensar em como seria dançar com Jasper. Algumas coisas não podiam ser apressadas. Quando ele me viu, Jasper deu um sorriso admirador, o que aliviou meu desapontamento. Eu dei uma última ajeitada no seu cabelo bagunçado, e nós saímos para encontrar meus maiores vampiros ursinhos.

Uma sensação desconfortável de nervosismo cresceu dentro de mim enquanto dirigíamos até a casa de Ivan. O grande vampiro era um amigo confiável, mas depois da pequena explosão de Chi-Yang, eu estava um tanto insegura de trazer Jasper até eles. As visões com o fogo não haviam me ajudado a me sentir mais segura.

“Jasper, Ivan e seu irmão Vasily são bons amigos meus, mas eles podem ser um pouco desconcertantes a princípio.”

“Eu percebi isso pelo telefonema.”

“Sim. Bem, eles ladram muito pior do que mordem, então não se sinta ameaçado nem nada do tipo, ok?”

“Eles são uma ameaça?” Seu tom estava completamente sério agora.

“Não. Absolutamente não. Se eles fossem, eu não te traria aqui. Apenas não deixe eles te atingirem.” Eu estava me perguntando se devia simplesmente dar meia volta com o carro e seguir para o norte quando eles entraram no nosso campo de visão. Eu entrei na garagem e me virei para ele.

“Alice, eu preciso saber se isso é seguro. Eu não vou deixar nada te ameaçar, mas eu preciso saber. Você compreende?” Ele estava sério e seu rosto estava quase assustado. Eu senti uma distância se formando entre nós, mas não sabia por quê.

“Se houvesse qualquer tipo de ameaça, eu não estaria aqui, eu juro.” Eu disse com o máximo de sinceridade. Então me lembrei das visões que eu estava mantendo em segredo e a culpa me atingiu como um soco. Jasper se enrijeceu no assento, e olhou intensamente para mim.

Eu me mantive firme.

“Preciso que você saiba que eu nunca lhe traria perigo ou deixaria qualquer um te ferir. Eu não vou deixar nada te ameaçar.” Ele olhou para mim com uma expressão impossível de decifrar e deu um aceno com a cabeça. “Se houver qualquer perigo, eu farei qualquer coisa para acabar com ele. Você acredita em mim, não acredita?”

“Alice, tem uma coisa que você prec-”

“Alice!” Lena deu um gritinho estridente enquanto me puxava para fora do carro e me arrastava para um abraço. Jasper estava ao meu lado num instante, mas relaxou quando me viu sufocada no abraço excitado de Lena. Mai-Li devia ter-lhe contado as novidades.

“Você deve ser Jasper,” ela disse enquanto recuava e o cumprimentava com um aceno de cabeça. Seus olhos se arregalaram quando ela olhou para o rosto e pescoço dele, mas ela continuou sorrindo.

“Venha! Nós ficamos esperando vocês chegarem o dia inteiro.” Ela nos conduziu pelas grandes portas para o interior da casa. “Os garotos estão no quarto dos fundos. Eles mal podem esperar para conhecer Jasper.”

Nós caminhamos atrás dela, e Jasper manteve-se ao meu lado, mas não pegou na minha mão até que estivéssemos quase dentro da casa. Até seus dedos tocarem os meus, a distância entre nós parecia um abismo. Como eu queria que ele tivesse terminado sua pergunta. Um minuto a mais e eu estaria livre. Ele queria entender o que eu era e estava disposto a me perguntar. Eu estava tão perto.

Ivan e Vasily estavam esperando por nós no espaçoso quarto dos fundos. Eles estavam com finos trajes de noite, mas o comportamento deles estava longe de ser amigável. Eles não foram abertamente hostis, mas permaneceram lá de braços cruzados contra o peito e com uma aparência muito severa. Ambos ficaram de olhos arregalados quando viram as cicatrizes de Jasper, apesar de nenhum deles mudar sua postura.

“Então, você é o homem que nossa pequena Alice trouxe para casa para nos conhecer,” disse Vasily numa voz muito paternal.

“Alice é muito especial para nós, e nos não podemos confiá-la a simplesmente qualquer um, então espero que você não se importe se lhe fizermos algumas perguntas,” continuou Ivan num tom ainda mais austero.

Deus do céu, não. Eu subitamente queria disparar de volta para a porta e nunca olhar para trás.

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