quinta-feira, outubro 07, 2010

Coalescence - Capítulo 04: Encontrando Os Irmãos

[Jasper]

Eu senti a tormenta passando através de Alice enquanto dirigíamos no carro. Ela sentia desespero, como se quisesse me avisar de algo, mas as emoções de criar uma mentira, a sensação de duplicidade e culpa, também estavam fazendo pressão contra mim. Meu peito frio contraía-se em resposta. Eu não suportaria que mentissem para mim. Não ela. Não agora.

Pela primeira vez em quase um século, eu finalmente sentia como se tivesse encontrado um lar. Eu havia começado a deixar velhas barreiras caírem, enquanto ela se importava comigo e tentava se certificar de que minhas necessidades fossem supridas. Eu havia até mesmo relaxado perto dela, deixando-a tocar-me como ninguém jamais havia feito. Eu ainda conseguia sentir o formigamento relaxado de quando seus dedos passaram pelo meu cabelo hoje mais cedo. Eu nunca havia sentido tanto conforto como quando ela fazia aquilo.

Agora ela estava mentindo ou talvez escondendo algo, o que era equivalente a mentir. Senti minhas barreiras se levantarem em resposta à ela.

Ela se virou para mim, sua face espelhando a incerteza que se agitava dentro de si.

“Jasper, Ivan e seu irmão Vasily são bons amigos meus, mas eles podem ser um pouco desconcertantes a princípio,” ela começou enquanto suas mãos reviravam-se no volante. Será que sua tormenta teria algo a ver com o bando que estávamos prestes a encontrar?

“Eu percebi isso pelo telefonema.”

“Sim. Bem, eles ladram muito pior do que mordem, então não se sinta ameaçado nem nada do tipo, ok?”

“Eles são uma ameaça?” Talvez essa fosse a fonte de sua desonestidade.

“Não. Absolutamente não. Se eles fossem, eu não te traria aqui. Apenas não deixe eles te atingirem.”

“Alice, eu preciso saber se isso é seguro. Eu não vou deixar nada te ameaçar, mas eu preciso saber. Você compreende?” Se isso fosse uma mentira, então ela seria uma mentira fatal para mim. Eu não deixaria que eles me machucassem, ou à ela. Senti minhas barreiras se fortalecerem quando o medo dela cresceu.

“Se houvesse qualquer tipo de ameaça, eu não estaria aqui, eu juro,” disse ela, mas uma nova onda de culpa emergiu dela. Meu corpo ficou tenso, como se fosse para uma batalha, com a sua resposta. Desta vez, não era para proteger eu mesmo; desta vez, a urgência era para protegê-la.

Ela tomou um fôlego, e pareceu chegar a uma conclusão. “Eu preciso que você saiba que eu nunca lhe traria perigo ou deixaria qualquer um te ferir. Eu não vou deixar nada te ameaçar. Se houver qualquer perigo, eu vou fazer qualquer coisa para acabar com ele. Você acredita em mim, não acredita?”

Eu acreditava?

Não. Ela não estava me contando a história inteira. Isso era certeza. Entretanto, parecia que ela queria contar, então eu decidi pressionar. “Alice, há alguma coisa que você prec-”

“Alice!” Uma mulher deu um gritinho e veio correndo, puxando Alice do carro. Eu abri a porta com tudo e saltei por cima do carro antes que sequer percebesse o que estava fazendo. A mulher, Lena, estava simplesmente a abraçando. Os sentimentos de Lena, pelo menos, eram diretos e excitados. Ela estava quase atordoada de alegria.

“Você deve ser Jasper,” ela disse enquanto recuava um passo e dava um aceno de cabeça para me cumprimentar. “Venha! Nós ficamos esperando vocês chegarem o dia inteiro.” Ela nos conduziu pelas grandes portas para o interior da casa. “Os garotos estão na sala. Eles mal podem esperar para conhecer Jasper.”

Minha mente deu voltas enquanto entrávamos na opulenta casa e íamos até o quarto dos fundos. Alice mandava olhares para mim. Eu estava bem consciente de que nós não estávamos de mãos dadas. Eu estava zangado. Estava zangado comigo mesmo por não ser capaz de confiar, zangado com Alice por não me dizer a verdade, e zangado com a péssima hora que a mulher russa chegou. Raiva e frustração mantiveram minha mão ao meu lado enquanto o forte desejo de tocá-la crescia em mim.

A próxima onda de emoções proveniente de Alice continha remorso e medo. Sua expressão facial estava derrubada, e todas as barreiras de proteção que eu havia erguido caíram em resposta. Eu devia ter mantido minha distância. Devia ter mantido minha raiva e redobrado minhas paredes.

Eu procurei por seus dedos e segurei sua mão com firmeza.

Senti a suspeita crua dos dois homens na sala muito antes de vê-los. Normalmente, eu teria tensionado-me para a luta, mas essa suspeita estava salpicada com um sentimento de proteção, curiosidade aberta e um nervosismo agudo. Esses homens eram os “ursinhos” de Alice. Se eles eram amigos dela, então a suspeita era apropriada, até mesmo justificável. Apesar disso, o nervosismo me deixava desconcertado.

Quando entramos na sala ricamente decorada, eu vi o que Alice quis dizer com “formal”. Os homens eram enormes, verdadeiros mamutes, e ambos estavam vestindo trajes finos. O tecido estava esticado ameaçadoramente pelos seus peitos largos. Seus rostos estavam duros enquanto estavam á parados com seus braços cruzados em seus peitos. Eu me perguntei o quão próximos os paletós deles estavam de rasgar. Eles me lembravam dos pais desaprovadores que eu havia visto ao longo dos meus anos. Percebi que esses dois estavam cumprindo exatamente esse papel para Alice, e minha boca ameaçou contorcer-se num sorriso com o pensamento. A repulsa comum à minha aparência passou por eles rapidamente e sua resposta protetora redobrou ao ver meu rosto feio.

“Então, você é o homem que nossa pequena Alice trouxe para a casa,” disse um deles.

“Espero que você não se importe se nós fizermos algumas perguntas,” continuou o outro.

Senti uma onda de raiva e vergonha saindo de Alice.

“Ivan,” ela rosnou num claro aviso enquanto que seu corpo se preparava para atacar.

“Alice, você é nossa amiga. Uma vampira jovem como você não devia apressar as coisas. Além do mais, nós queremos saber mais desse amigo que você trouxe para a nossa cidade.” Ele estava tentando soar sábio e paternal, e meu crescente bom humor foi acompanhado pela raiva crescente de Alice. Ela parecia preparada para arrancar o braço dele fora.

“Jasper, eu sinto muito por eles estarem agindo assim. Nós devíamos ir,” ela disse virando-se para mim. Eu tirei os olhos dos irmãos russos para olhar em seu rosto horrorizado. Sua vergonha estava crescendo exponencialmente. Senti o lado da minha boca contorcer-se no sorriso que eu havia estado combatendo. Sua raiva apenas tornava o cenário todo muito mais engraçado.

Em toda a minha existência como vampiro, eu nunca, nunca havia esperado presenciar essa cena.

“Nós podemos ficar. Por mim, está tudo bem,” eu disse gentilmente enquanto tentava aliviar o desconforto dela. Na verdade, eu estava começando a ficar ansioso por este encontro. “Você não vai nos apresentar?”

“Não há necessidade,” ela disparou, “porque eu vou matá-los antes que você tenha a chance de fazer amizade com eles.” Ela tinha um temperamento e tanto. Ela era adorável quando estava brava.

“Vamos lá, Alice, nós só estamos querendo seu próprio bem. Eu sou Ivan, e este é meu irmão Vasily. Nós comandamos o grupo em Nova York e Chicago.” Isso não era muito uma apresentação, mas teria que servir.

“Prazer em conhecê-los,” eu acenei.

“O que você era antes de ser transformado?” demandou o que se chamava Ivan.

“Oh, eu não posso acreditar nisso!” gemeu Alice. A frustração de Alice estava quase explodindo em violência. Seu pequeno rosto estava enrugado num biquinho zangado. Se ela mostrasse sua língua, ela teria ficado igual uma petulante criança de três anos.

“Está tudo bem, Alice.” Eu tentei acalmá-la novamente. “Eu fui um soldado pelos últimos três anos da minha vida humana. Antes disso, eu era um jovem destinado ao seminário ou à faculdade.”

“Você queria ser um padre?” Ela perguntou, chocada. Eu acho que provavelmente devia ser um tanto surpreendente, dado o meu passado brutal.

“Isso foi há muito tempo atrás.” Muito, muito tempo.

“Não sei não. Eu realmente consigo imaginar você como um homem do clero.” Disse Ivan pensativamente. Seus olhos moveram-se brevemente para o meu rosto, e então ele virou sua mão para encará-la. Instantaneamente, suas emoções passaram de suspeita para um terrível desconforto. Este encontro de Alice estava tornando-se bem interessante.

“Apesar de que isso nós traz à próxima pergunta. Quais são suas, hmm, intenções com Alice? Elas são honradas?” Ivan trocou o pé de apoio e olhou para o teto. Senti minha boca subitamente formar o sorriso involuntário que eu estava tentando ocultar.

Ah, aquela pergunta.

Ao meu lado, Alice soltou um gemido patético e desmoronou. Seu humor estava assassino.

“É claro. O que mais elas seriam?” Eu disse, enquanto minha mente ponderava a verdade daquilo. Então uma imagem bastante vívida de Alice me mostrou exatamente o quão não-“honradas” minhas intenções podiam se tornar. Foi preciso dar tudo de mim para não seguir observando a imagem até sua conclusão.

Alice estava tão irritada que estava tremendo. Ela estava olhando para Ivan como um predador olha para a sua presa. Sua raiva era tão potente que eu sabia que ela estava pronta para atacar e iria provavelmente arrancar um membro. Eu era capaz de dizer, pelo ângulo dos seus olhos, em qual membro ela estava mirando. Eu me encolhi por dentro enquanto pensava nela atacando Ivan ali. Ela lutava sujo.

Vasily riu. “Eu posso pensar em mais de uma maneira de elas serem menos que honradas! Se você precisar de algumas idéias para isso, pode vir falar comigo. Com um pouquinho de conhecimento se vai longe, hein, Alice?” Ele piscou para mim e então bufou quando o cotovelo do seu irmão o atingiu com força nas costelas. Ouvi Alice soltar um alto e selvagem rosnado. As emoções que pairavam nesse cômodo eram tão intensas e tão desconfortáveis, que eu quase ri.

A mão de Ivan se abriu por uma fração de segundo e então ele olhou para mim.

“Quando você foi transformado e de onde você veio?”

Tossi para disfarçar minha risada. Eles fizeram anotações! Céus, como eles fizeram anotações para isso?

Os irmãos ainda estavam suspeitos e um tanto protetores – não, possessivos – por Alice. Isso poderia ser facilmente usado contra eles, então eu posicionei meu braço firmemente ao redor do ombro dela. Isso não só irritaria os russos, como por sorte os protegeria dela. O humor dela mudou instantaneamente, indicando que ela compreendia, e ela se acomodou mais para perto para irritá-los. A proximidade do seu corpo trouxe a não-honrada e muito agradável imagem de volta com força total. Eu engoli antes de continuar.

“Fui transformado durante a Guerra Civil em Galveston, Texas, em 2 de janeiro de 1863. Minha criadora criou exércitos de recém-nascidos para lutar em batalhas territoriais no sul. O nome dela é Maria, e eu lhe servi por quase oitenta anos.”

“Qual era o seu papel no exército?” perguntou Ivan intrigado. Essa questão havia sido espontânea.

“No começo eu era simplesmente um soldado, mas meu treinamento me ajudou a subir de cargo rápido. Sobrevivi as várias batalhas no princípio, e Maria me manteve. Eu eventualmente subi de ranking para comandante das forças dela.” Senti a preocupação deles crescer, mas a doce sensação de respeito agora coloria a emoção deles.

“Quais eram seus deveres como comandante?”

Fiquei tenso. Eu não queria que Alice ouvisse isso, mas ela não havia saído correndo quando eu lhe disse o que eu era, então talvez ela não fosse se importar com os detalhes. “Eu treinava recém-nascidos, criava planos de batalha e os conduzia para a luta.” Eu não mencionei que precisava matá-los.

“Isso explica porque você tem essa aparência,” assentiu Ivan.

“Ele tem uma aparência perfeitamente boa, Ivan,” Alice devolveu enquanto uma nova onda de frustração cresceu dentro dela. Sua fúria a tornava tão adorável. Apesar de eles serem tão desiguais no tamanho, eu estava disposto a apostar que Alice daria uma bela adversária para Ivan numa luta. Eu teria amado vê-la arrancar algumas partes do corpo do grandalhão.

“Ele tem uma boa aparência pra um soldado,” replicou Vasily lançando um olhar preocupado para mim. Ele sabia que ela estava furiosa com ele. Ele recuou um passo antes de continuar. O vampiro não era bobo.

“Alice, nós fomos criados durante o reinado de Ivan, o Grande. Nós fomos feitos para sermos soldados numa guerra parecida que se espalhou por todo o leste europeu na época. Ninguém sobreviveu por mais que vinte anos. Ninguém. Seu Jasper viveu a vida de um soldado por oitenta anos, o que significa que existe mais nele do que simplesmente ser um soldado.” Por apenas um instante, eu vi uma pontada de medo nos olhos de Vasily quando ele olhou para mim. Meu passado violento e minhas cicatrizes profundas assustaram o grande guerreiro. Ótimo.

“Ainda assim, eu lutei sim por todo esse tempo como o líder de vários exércitos de recém-nascidos. Eu era muito, muito bom no que fazia. Eu era bem-sucedido, mas odiava. Quando me disseram sobre a liberdade que era possível obter no norte, eu parti.” Fiz minha voz aveludada, e combati a preocupação crescente deles com uma onda de paz.

Ivan limpou a garganta e olhou de relance para a sua mão. “De que tipo de contexto familiar você vem?”

Ele estava brincando? Ele ao menos havia percebido que eu era um vampiro?

“Dado que eles estão mortos há setenta anos, isso importa?” perguntei, tentando esconder o sarcasmo da minha voz.

“Não. Não, eu acho que não. Eu estava apenas pensando a respeito deles.”

“Eles eram boas pessoas que viveram boas vidas e morreram.”

“Ah, sim. Isso soa direito,” ele disse enquanto trocava o pé de apoio de novo.

Vasily olhou para a sua mão, franziu a testa, e então perguntou, “Ah, então, quais são seus planos agora? Como você vai sustentá-la?”

De onde eles haviam tirado essas perguntas? Quem diabos perguntava essas coisas para um vampiro com cem anos de idade?

“O quê?!” rosnou Alice. “Me sustentar? Eu? Oh, pelo amor de Deus, Ivan! Eu te sustento. Se lembra?”

Ela ficou lá em pé com as mãos nos quadris e seu queixo empinado. Ela parecia uma linda pequena duende que eu havia visto uma vez desenhada num livro. Sua raiva era totalmente encantadora. É claro, eu era esperto o suficiente para não dizer-lhe isso.

Ivan parecia murcho. Aparentemente, ela tinha razão, e ela não precisava de ajuda para se sustentar. Aproveitei o momento para acabar com isso. “Como eu disse, estou cansado de lutar. Cansado de matar. Tudo o que eu quero é viver minha vida em paz como um homem livre.”

“Nós compreendemos a necessidade por liberdade,” acenou Ivan com a cabeça. “Na verdade, ela está nos causando alguns problemas nesse exato momento.”

“Nós também abandonamos nossos exércitos. Nós viajamos por toda a Rússia, tentando encontrar algum bom lugar para nos alimentarmos em paz,” adicionou Vasily.

“Nós viemos para cá durante a Revolução Russa, porque toda a área tornou-se opressiva.” Lena havia entrado e estava parada perto de Vasily. “Esperamos retornar algum dia quando os socialistas perderem o poder, mas até lá, estamos presos aqui.” Sua tristeza por causa do lar perdido estava espessa na sua voz.

“Então nós entendemos um ao outro,” afirmei, enquanto enviava uma segunda onda de paz.

Ivan suspirou. “Você precisa entender. Alice é nossa amiga, e não são muitos da nossa espécie que têm amigos fora dos seus bandos. Ela significa muito para nós, e nós não iremos vê-la se ferir.”

“Eu não a machucaria,” respondi automaticamente. Meu braço a puxou contra meu corpo. Eu estava chocado pelo quão forte e quão automática aquela resposta havia sido. Eu não a machucaria. Eu não era capaz de machucá-la. Agora eu estava totalmente à mercê dela.

O sentimento dela mudou para alegria. Ela havia ouvido o significado subentendido das minhas palavras.

Mas ela me machucaria?

Bani o pensamento quando o braço dela retornou o abraço desajeitado.

“E então, nós somos bem-vindos aqui?” ela demandou.

Vasily riu e abriu os braços para ela. Observei quando ela foi até ele e foi esmagada em seu abraço de urso. Eu me perguntei se ele fazia idéia do quanto inseguro aquilo era para ele agora.

Ivan caminhou até mim e me deu um tapa nas costas.

“Então, hm, você gosta de jogos, Jasper?” ele perguntou. Ele estava tentando ser gentil.

Jogos? Quanto tempo fazia desde que eu havia jogado? Tempo demais para que eu não me lembrasse de nada a não ser de que eu os havia amado uma vez. “Sim, eu acredito que sim.”

“Venha conosco e nós vamos escolher algo divertido. Nós temos centenas deles.” Ivan nos conduziu mais para dentro da casa gigante, para um cômodo cujas paredes estavam cobertas com algumas prateleiras de livros e estante após estante de jogos.

“Quais são seus favoritos?” perguntei no meu sotaque sulista. A maioria deles era tão novos que eu não os reconhecia.

“Poker, canasta, xadrez e Banco Imobiliário,” respondeu Vasily. Ele parecia tão excitado quando um garoto na escola. Eu me permiti sorrir para a inconsistência entre seu tamanho e sua expressão.

Dentro de minutos, eu fui enfrentado tanto por Vasily quanto por Lena no xadrez. Ivan e Alice estavam duelando no Banco Imobiliário. Vasily era um jogador sólido, mas assim que eu me lembrei das regras do jogo, fui capaz de ver facilmente qual era sua estratégia. Nós terminamos muito antes de Alice e Ivan.

Os irmãos russos estavam em êxtase por me terem como novo adversário. Era um tanto estranho ser visto dessa forma, especialmente dado que eu havia estado pronto para matá-los algumas horas atrás. Entretanto, eles gostavam muito dos seus jogos, assim como eu, aparentemente.

Alice me ensinou a jogar Banco Imobiliário, um jogo ao qual ela parecia muito familiar. Ela venceu com muita destreza. Depois disso, fomos parceiros no restante dos jogos. Ela sentou-se tentadoramente próxima de mim ao longo da noite, e eu desejei mais de uma vez ter um pouco de privacidade com ela. Havia tanto que eu precisava saber, tanto que eu ainda não entendia. Eu também simplesmente queira ficar com ela de novo. Sozinhos. Eu sentia falta do seu cheiro.

Nós jogamos jogos por toda a noite, e começamos uma maratona de poker pelo dia seguinte. Eu estava enferrujado no jogo, mas rapidamente peguei o jeito. Eu havia jogado esse jogo frequentemente com os recém-nascidos, e adorava a idéia de enfrentar meus oponentes gigantes. Nós apostamos apenas fichas, mas não teria importado se nós tivéssemos apostado ar, eu era competitivo demais para não tentar ganhar.

Era claro que os irmãos também eram. Eles tornaram-se tão sérios quanto se estivessem numa batalha quando o jogo começou. Para nós soldados, eu acho que era como se fosse uma batalha. Nós todos éramos incansáveis em nosso desejo de superar o outro. Eu me senti em casa me opondo à eles porque esse era o tipo de batalha de que eu gostava. Eu era minoria, e eles trapaceavam.

Agora que eu estava finalmente impetuosamente determinado a bater um oponente, eu estava realmente me divertindo.

A cada rodada, comecei a ver um estranho padrão nas jogadas. A princípio, eu não estava verdadeiramente entendendo o motivo, mas então minha atenção recaiu sobre Alice. Ela recebia suas cartas, fazia alguns ajustes e então as observava desfocadamente por um momento. Era tão rápido que eu quase não percebi. Nenhum dos outros jogadores prestou qualquer atenção.

Eu não conseguia acreditar no que estava cogitando. Era absurdo. Não era possível. Ainda assim, no mundo dos míticos, será que algo podia ser impossível?

Alice raramente vencia, mas sua jogada quase sempre favorecia Ivan ou eu. Apesar dos outros terem ganhado várias rodadas, Ivan e eu tínhamos muito mais vitórias do que deveríamos. Eu comecei a sentí-la, a vasculhar as emoções no cômodo, como eu sempre fazia, e Alice era quase um espaço vazio. Sua usual felicidade e seu senso de realização eram tudo o que eu conseguia sentir. Os outros tinham todas as emoções de um jogo: surpresa, antecipação, felicidade, raiva, frustração, mas nenhum desses emanava de Alice. Ao invés disso, ela era meramente cautelosa, exceto por pequenos momentos de total vazio. Em um momento, ela estaria sentada ao meu lado, e no próximo, era como se ela desaparecesse. Observei-a tentando entender, mas a única pista que pude captar foi um estranho vazio na sua expressão.

Por volta da nossa trigésima terceira rodada, eu sabia que Alice estava de alguma forma afetando o jogo. E ela estava fazendo de propósito. Com uma frieza crescente, eu percebi que a linda elfa cuja vida havia despedaçado a minha possuía algum tipo de dom. E se ela estava afetando um jogo de azar, era um dom formidável. Eu nunca havia ouvido falar de um dom que pudesse virar um jogo de probabilidades para favorecer alguém.

Era isso que ela não podia compartilhar? Era essa a mentira que ela carregava? Ou seria algo muito pior? O quanto dela eu não estava vendo?

Será que ainda sequer importava?

Eu queria Alice. Eu precisava dela. A necessidade era incondicional e irresistível, e agora eu me dava conta de que eu não poderia partir.

Enterrei profundamente os meus próprios sentimentos e simplesmente joguei. Fiquei focado nas rodadas e as histórias com as quais os irmãos nos presenteavam. Essas histórias eram realmente parecidas com as minhas, mas enquanto eu terminei na solidão, eles vieram para Nova York. Por mais distraído que eu estivesse, eu gostei das histórias intermináveis sobre guerra e destruição. Eles haviam tido vidas interessantes, até mesmo para vampiros, e ambos aprontavam bastante. Eles tinham uma afinidade muito estranha por gado e humanos inescrupulosos, geralmente as duas coisas ao mesmo tempo.

Durante todo o tempo, eu me contorcia por dentro enquanto percebia o quão envolvido eu havia ficado em três dias. Alice era tudo para mim. Ela segurava minha própria alma em suas mãos pequenas, e tudo o que eu podia fazer era esperar que ela fosse de fato o anjo que eu havia imaginado que ela fosse.

Após múltiplas rodadas de poker e uma dúzia de histórias de cada um, Vasily finalmente fez o que eu temia, e me pediu para me contar sobre minhas batalhas. Eu não possuía histórias engraçadas sobre vitórias. O que eu havia feito seria melhor manter no buraco escuro da minha memória.

“Não tenho muito para compartilhar. Eu treinei exércitos, conduzi batalhas, matei inimigos, matei os recém-nascidos e depois treinei mais soldados.” Eu tentei aparentar estar calmo e focado nas minhas cartas. Eu precisava que esse assunto terminasse.

Os irmãos ficaram quietos por apenas um momento antes de rapidamente começarem uma história a respeito de usar porcos vestidos como bispos para aterrorizar uma cidade. Não havia razão para pregarem essa peça, outra a não ser que estavam entediados. Eu comecei a me dar conta de que essa gigante sala de jogos era provavelmente a única coisa evitando que Nova York fosse completamente destruída. O conto dos Porcos Bispos de alguma forma conduziu à uma discussão a respeito das aventuras deles tornando-se recém-nascidos sedentos de sangue juntos. Os dois haviam dizimado quatro vilas com suas sedes combinadas nos primeiros dias de sua imortalidade. Seu bando teve que entrar lá e queimar os vilarejos até não sobrar nada, para esconder as chacinas. Os dois irmãos riram com a lembrança.

“E quanto a você, Jasper? Você foi transformado durante uma guerra, você também encontrava refugiados para se alimentar?” ele me perguntou diretamente. Para minha surpresa, eu peguei a mim mesmo respondendo-lhe.

“Não completamente,” eu disse, e então tive que me conter. A memória daquele dia disparou para dentro de mim enquanto eu estava despreparado para lidar com ela. Aquela primeira lembrança foi intensamente dolorosa, e eu precisava me recompor antes que pudesse responder. Os gritos das minhas vítimas encheram minha cabeça enquanto eu tentava controlar a agonia de suas mortes. Respirei fundo para me reestabilizar, e comecei minha história.

“Quando a queimação finalmente acabou, Maria me contou o que eu era. A sede era horrível, e ela me contou que ela poderia alcalmá-la. Ela me levou para me alimentar num campo onde os civis estavam para fugir dos bombardeios. Aquelas eram as mesmas pessoas que eu havia ajudado a evacuar, e eu simplesmente não poderia me alimentar das mulheres e crianças que eu havia tentado proteger. Ela ficou muito brava comigo, e me disse que então eu iria me alimentar daqueles que pudessem se defender. Eu precisei dar tudo de mim para ir embora do campo de refugiados, e então ela me levou até uma barraca médica cheia de soldados sangrando, e eu não consegui me controlar. Nós dois nos alimentamos deles. Não foi até que eu agarrasse meu sexto humano que retomei minha consciência o bastante para reconhecer o que eu havia feito. Ele olhou para mim com os olhos cheios de dor e simplesmente disse, ‘Capitão?’” Minha voz se partiu quando o som dele implorando ecoou pela minha mente. Eu nunca o esqueceria.

Levou um momento até que eu conseguisse falar de novo, mas quando eu o fiz, não senti nada. Minha voz estava apática. “Ela fez de propósito. Ela me levou até os meus homens para que eu me alimentasse deles. Eu os havia conduzido para a batalha, lhes havia dado o treinamento de que precisavam para sobreviver, havia lutado e sangrado por eles, e eles haviam feito o mesmo por mim. Ela me levou até lá para me mostrar que tipo de monstro eu era. Minha primeira refeição foi do sangue dos meus próprios homens.”

“Ela é o monstro,” sussurrou Lena após uma pausa. Eu não conseguia dizer nada.


[Alice]

Eu estava sentindo dor. Doía, fisicamente doía, ouvir a agonia, e então o vazio na voz de Jasper. Eu sabia que o vazio significava que ele estava sentindo tanta dor que havia tornado a si mesmo insensível. Eu podia quase visualizar as mortes enquanto ele falava. Eu podia visualizar o rosto dele quando ele percebeu o que havia feito. Eu havia exibido aquela mesma expressão quando matei o primeiro estranho que atravessou o meu caminho.

Não era justo. Jasper estava se divertindo, e então uma simples pergunta arruinou tudo para ele. Aquela lembrança lhe havia causado uma dor terrível, mesmo depois de todo esse tempo. Eu odiava Maria com um fogo que poderia tê-la queimado até virar cinzas se ela tivesse estado aqui. Sentada ao lado dele, tudo o que eu pude fazer foi posicionar minha mão no braço dele e esfregá-lo. Eu não era capaz de dizer se aquilo tinha ajudado ou não.

Os garotos retornaram para suas histórias após o conto de Jasper, mas nenhum de nós estava mais no humor para jogos ou conversa. Eu queria levar meu soldado ferido para longe daqui e tentar cuidar de suas feridas.

Nós partimos da casa de Ivan no sábado bem cedo.

“E agora?” perguntei enquanto vagávamos pelas ruas antes do sol nascer. Agora que estávamos sozinhos, seu humor estava muito mais leve. Ele olhou para mim com seu sorriso torto e simplesmente apertou minha mão.

Eu havia passado quase três dias completos com ele, e estava completamente feliz. As visões de fogo ainda estavam no fundo da minha mente, mas eu era capaz de mandá-las embora e aproveitar os momentos com ele. O sol nasceria em uma hora, e nós precisávamos decidir onde iríamos querer passar o dia.

“Quando é que precisamos ir até a casa de Chi-Yang?” ele perguntou.

“Eu não sei nem ligo. Eu não tenho certeza se quero ir vê-lo.” O último dia e meio havia acabado correndo muito bem, mas a memória de Ivan e Vasily torturando Jasper ainda estava muito fresca na minha mente.

“Eu não me importo de ir vê-los. Já te disse, desde que eu não tenha que lutar contra Chi-Yang, ele é quase como um amigo.” Eu bufei em resposta, e ele deu um risinho.

“Eu estava pronta para arrancar várias partes dos últimos amigos e perfurá-los com o salto dos meus sapatos,” eu bufei. “Não estou disposta a passar por isso de novo.”

“Seus sapatos não teriam sido muito bons para perfurá-los,” Jasper zombou.

“Eu sei, mas teria sido divertido tentar,” eu disse com um sorriso.

“Lena mencionou algo sobre um museu.”

“Você gosta de museus? Que tipo você gostaria de visitar?” Um museu significava mais tempo sozinhos, e isso era bom.

“Gostaria de visitar um museu histórico. Eu gosto de arte, mas não tanto quanto gosto de história.”

Mudei de caminho e me dirigi para o Museu de História Natural. Se corrêssemos, nós poderíamos facilmente chegar lá e entrar antes do amanhecer.

“Haverá humanos,” eu avisei.

“É mais fácil estar próximo deles quando estou perto de você. Você tem uma tendência a me distrair.”

Pelo menos era mútuo.

Vagamos pelo museu o dia todo, começando pelas salas nos fundos onde os objetos estavam limpos e categorizados. O resto do museu ficaria fechado pelas quatro primeiras horas em que estávamos ali. Jasper tinha tanta sede por conhecimento quanto eu havia tido, e ele olhava para cada item exposto e lia cada palavra no local. Quando ele estava estudando um objeto, a aparência constante de tensão, ou talvez de dor, era completamente apagada, e sem preocupações em seu rosto ele se tornava completamente lindo para mim. Surpreendentemente, seu conhecimento era profundo em quase todos os assuntos que o museu cobria.

Enquanto caminhávamos pela exposição egípcia, minha curiosidade a respeito do seu passado me venceu.

“Você realmente almejava ir para o seminário?” Perguntei baixo.

Ele se virou e deu o meio-sorriso sarcástico. “Irônico, não é?”

“Não mais do que ter vivido numa igreja,” eu o lembrei.

“Eu não me lembro da maior parte da minha vida antes de ser transformada, mas há algumas coisas das quais eu sei. Meu avô era um pastor, e um dos bons. Meu pai era um advogado e também era muito bom. Eles podiam convencer qualquer um de qualquer coisa. Como eu, meu avô esteve na guerra quando era jovem, e foi gravemente ferido na guerra de 1812. Ao contrário de mim, ele sobreviveu à guerra e fez a vida promovendo a paz e o amor. Ele era o homem mais corajoso e cheio de compaixão que jamais conheci, e eu queria ser como ele.”

“Foi por isso que você foi para a guerra, para ser como ele?”

Ele ficou quieto por um momento, e eu tive medo de ter ido longe demais. Sua voz estava estável, mas amarga, quando ele prosseguiu.

“Fui para a guerra porque eu era jovem e tolo e sonhava com a glória. Eu era um bom líder e ainda melhor soldado, e rapidamente fui promovido a Major mesmo sendo jovem demais. Eu estava planejando ir para o seminário como o meu avô ou para a universidade estudar Direito como o meu pai, mas não pelas razões pelas quais eles foram. Tudo o que eu queria era o respeito e a honra das posições que eles detinham. Eu estava disposto a me tornar qualquer coisa pela glória e poder que eu almejava. Quando Maria me criou, eu ainda queria a glória que provinha da batalha, então eu me tornei o líder de suas guerras intermináveis e inúteis.”

Ele não estava olhando para mim, ele apenas falava, e eu podia sentir o remorso em suas palavras e em seu corpo. Quando ele terminou, ele simplesmente removeu sua mão da minha e passou para a próxima exibição sem olhar para mim.

Isso doía.

Doía vê-lo carregar tanta culpa e remorso com ele. Doía que eu não sabia como acabar com essa dor. Doía que eu o havia pressionado demais de novo. Doía porque o arrependimento é um fardo terrível para se carregar por toda a eternidade.

Pareceu levar uma eternidade até que ele me notasse atrás dele, mas ele finalmente estendeu sua mão para mim, e eu escorreguei meus dedos pelos dele com alívio. Eu estava feliz por saber que não o havia ferido demais com a minha insistência. Eu havia estado ao redor de soldados e da guerra desde 1945, e eu sabia quanta dor eles frequentemente carregavam. Ainda assim, eu estava angustiada com o que Jasper era obrigado a suportar.

Jurei para mim mesma, e para ele, que eu faria o que fosse necessário para ajudá-lo a encontrar sua paz.

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