terça-feira, outubro 12, 2010

Coalescence - Capítulo 05: Uma Virada Do Destino

Nós voltamos para a casa enquanto as sombras se estendiam sobre a cidade. Eu tomei um banho, usando meu sabonete com cheiro de rosas abundantemente, e troquei de roupa. Duas vezes.

Quando eu saí com uma nova roupa e perguntei como ela estava, tudo o que Jasper fez foi balançar a cabeça incrédulo. “Você sujou o outro vestido?”

“Não, claro que não, mas eu não quero vestir a mesma roupa em duas ocasiões diferentes. Essa aqui está bem, ou eu deveria vestir algo um pouco mais formal?”

Jasper respirou fundo e pensou por um minuto antes de dizer qualquer coisa. “É um vestido adorável, e você está maravilhosa com ele. Eu não sei o quão formal isso supostamente deve ser.”

Eu olhei de relance para meu reflexo na janela e voltei para colocar um terceiro vestido. Esse era bem justo e formal. “E quanto a esse?”

“Adorável.”

“Só isso? Você acha que está formal demais?”

Ele não disse nada, então olhei para ele. Ele estava parecendo o cervo que eu havia caçado.

“Você parece assustado,” eu disse com surpresa.

“As mulheres no bando de Maria sempre me faziam perguntas como essa.”

“E?” Eu não havia entendido.

“Era uma armadilha.”

“O que isso quer dizer?”

“Quer dizer que não importava o que eu dissesse, era sempre a coisa errada. Era como se elas conspirassem para me fazer responder essas perguntas impossíveis, e então elas ficariam bravas comigo independentemente da resposta. Elas eram capazes de ficar bravas por dias se eu respondesse algo errado. E a pior parte era, eu nunca descobria qual era a resposta certa.” Ele estava um tanto agitado, então eu apenas sorri e voltei para o quarto. Homens são criaturas estranhas.

Escolhi um vestido de seda semi-formal para usar de noite, porque sabia que meus amigos chineses considerariam esta uma ocasião especial. Eu percebi um pouco tarde demais que Jasper não tinha uma gravata, e jurei que resolveria aquele problema na segunda feira seguinte.

Mas a idéia de fazer compras trouxe consigo outro pensamento desagradável. Eu ainda não havia caçado. Já fazia quase uma semana agora, e a sensação de queimação estava começando a se intensificar. Eu não fazia ideia de como caçar sem adentrar a floresta, mas a floresta significava árvores, e árvores eram o local onde se passava a visão do incêndio. Eu decidi não me preocupar com isso por hora, e por um instante me perguntei o quão cheio estava o zoológico enquanto trancava a porta do meu apartamento e ia para o carro de braços dados com meu próprio pedaço de paraíso.

Jasper ficou fascinado com as cores brilhantes e ricas texturas de Chinatown. Mesmo tomada pela pobreza, a área reverberava uma riqueza cultural e uma beleza única. A aparência, os sons e a linguagem lhe fascinavam profundamente.

Mai Li estava esperando para nós no lado de fora de seu portão alto e vermelho. Ela estava maravilhosa. Vestia uma blusa lindamente bordada com calças combinando. Seu cabelo estava preso de forma elaborada, com presilhas enfeitando-o. Ela deu um largo sorriso enquanto nos aproximávamos.

“Jasper e Alice, bem vindos à nossa casa,” ela disse graciosamente, curvando-se de leve.

“Obrigado,” disse Jasper curvando-se um pouco mais. Tão cavalheiro.

Eu andei para a frente e lhe dei um abraço rápido, e ela nos conduziu para dentro da gigantesca casa deles. Jasper deixou escapar um suspiro quando entramos. A casa deles era tão grande quanto qualquer castelo europeu, mas decorada no delicado estilo da China. Misturadas com jarras decoradas e esculturas de jade, estavam centenas de armas de épocas e estilos variados. Elas estavam por toda a parte. Chi Yang era o filho de Genghis Khan, e ele achava armamentos tão belos quanto arte, provavelmente até mais.

Os olhos de Jasper absorveram tudo rapidamente, e eu podia dizer que ele compartilhava da afinidade de Chi-Yang.

Mai Li também notou o interesse de Jasper e começou a lhe contar sobre as várias peças artísticas que eles possuíam enquanto caminhávamos pelo hall até a grande escadaria. As salas principais estavam no segundo andar.

Enquanto ela falava e apontava para as peças, ela me lançava sorrisinhos ou piscadelas. Eu percebi com uma sensação desagradável que isso poderia ser pior do que o interrogatório de Ivan.

Chi Yang estava no topo da escadaria esperando por nós num quimono com enfeites pretos. Ele era, também, totalmente bordado. Amarelo era a cor da realeza e ele estava se exibindo. Ele havia se arrumado para nós, o que era ou muito ruim ou muito bom.

“Bem-vinda, Alice, bem-vindo, Jasper Whitlock,” ele disse sem sorrir.

“Obrigado, senhor,” curvou-se Jasper novamente. Ele era realmente bom com convenções sociais.

“Por favor venha e junte-se a nós,” ele indicou para que sentássemos enquanto sua boca se levantou um pouco no que poderia ser uma tentativa de sorriso, mas parecia mais uma careta. Era um tanto assustadora. Mas pensando no assunto, eu o havia visto sorrir apenas algumas poucas vezes, e elas haviam sido realmente assustadoras. Talvez fosse melhor que ele não formasse um sorriso.

Nós todos caminhamos para dentro da sala de estar deles, que tinha uma decoração simples, porém muito formal. Os assentos a que eles nos conduziram eram um tanto próximos ao chão, e Jasper teve dificuldade de encaixar seu corpo alto neles. Chi Yang e Mai Li sentaram-se em frente a nós, com uma mesa preta baixa e laqueada no meio. Por tradição, havia um bule com chá fumegante na mesa com quarto xícaras posicionadas. Cada vampiro de Nova York amava a tradição da qual nossos membros chineses recusavam-se a abrir mão. Era simplesmente tão aconchegante.

Jasper me lançou um olhar confuso, e eu balancei a cabeça infinitesimamente. Nós nunca devíamos bebê-lo. Era um sinal de boas-vindas.

Mai Li despejou o chá nas nossas xícaras e sentou-se de volta.

“Então, Jasper, Ivan disse que você lutou nas guerras de bandos do sul por oitenta anos. Estou impressionado com a sua força. Eu sei de apenas alguns poucos guerreiros que suportaram as batalhas constantes por tanto tempo. Estou feliz por Alice ter encontrado um protetor tão valioso.” Chi Yang estava sorrindo como se essa fosse a maneira mais normal de se começar uma conversa. Eu engoli e tomei fôlego. Isso estava definitivamente prometendo ser pior do que a recepção dos russos.

“Chi Yang, você se esqueceu de nossas batalhas com Alice? Ela não precisa que ninguém a proteja,” disse Mai Li.

“Obrigada!” eu respondi com emoção, e então atirei à Chi Yang um olhar malicioso. Já era tempo de alguém aqui reconhecer minhas habilidades.

Chi Yang riu. “Você já lutou com Alice, Jasper? Minha parceira está correta, ela é quase impossível de derrubar.”

Jasper levou um instante para responder. “Eu ainda nem considerei a idéia.”

“Você devia. Ela é tremendamente rápida e muito ágil, apesar de não ser tão ágil quanto Mai-Li e certamente não tão letal.” Ele olhou para sua parceira com ternura. Mai-Li sorriu num orgulho tímido. “Minha parceira é uma das assassinas mais letais da nossa espécie. Assisti-la matando é uma coisa verdadeiramente bela. Ela sobreviveu até mesmo a ter sua cabeça arrancada.”

“Veja, aqui está minha cicatriz,” ela disse, e inclinou a cabeça para trás para mostrar a fina linha que agora era apenas levemente visível. Eu achei um pouco doentio que eles se gabassem daquilo, mas eles eram de uma época muito menos civilizada.

“Impressionante,” concordou Jasper com a cabeça. “Não muitos sobrevivem depois disso. Como você sobreviveu e quanto tempo levou para cicatrizar?”

“Chi Yang estava comigo e repeliu meu atacante. O atacante era um profeta muito dotado que Alice finalmente matou.” Ela sorriu para mim e eu retribuí o sorriso orgulhosa.

“Eu estava completamente curada depois de sete dias. Chi Yang me ajudou a recolocar minha cabeça e me arrumou um humano imediatamente, e então eu comi dois por dia até estar completamente curada,” ela explicou. Eu estava feliz porque não sabia daquela contagem de corpos até agora. Quinze humanos haviam morrido.

“Qual foi seu pior ferimento, Jasper?” perguntou Chi Yang com ansiedade. Seu amor por histórias de guerra era insaciável.

“Aqui,” disse Jasper enquanto traçava a cicatriz mais profunda embaixo do seu queixo. “Minha cabeça foi atacada com mais frequência do que qualquer outra parte do meu corpo, mas essa aqui quase a arrancou.” Ele zombou morbidamente da lembrança. Ele nem mesmo ouviu minha exclamação de surpresa.

“Ela quase foi arrancada treze vezes, e minha mão foi arrancada quando eu era recém-nascido, mas ela se curou também. Mas eu não tinha acesso imediato a humanos. Acredite, se eu tivesse perdido a cabeça, ninguém jamais teria considerado tentar me salvar.”

Um gargarejo estrangulado saiu da minha garganta antes que eu pudesse abafá-lo. Três pares de olhos vermelhos me olharam com curiosidade.

“Como você pode falar tão calmamente sobre quase ter morrido?” eu demandei.

“Nós somos vampiros,” disse Jasper rapidamente. “Morrer é uma parte grande das nossas vidas. Quando você faz parte de um bando fixo, há apenas duas opções: matar ou morrer tentando. É isso o que somos.” As palavras finais foram ditas com firmeza, quase como se ele estivesse falando diretamente comigo.

“Ele era um soldado, Alice, e ele compreende,” injetou Chi Yang. “Lembra de Michael e Brittany?”

“É claro que lembro,” disparei enquanto as imagens familiares rugiam dentro da minha cabeça. A imagem de seus corpos despedaçados queimando num incêndio em sua própria casa era uma das piores lembranças que eu carregava. A culpa se apoderava de mim de novo enquanto eu me dei conta de que não havia alertado Jasper sobre a ameaça de fogo que eu havia visto vagamente. A mão de Jasper apertou a minha brevemente. “É só que eu não acho que quase morrer é algo sobre o que alguém deva sair se gabando.”

“Sobre o que mais deveríamos nos gabar?” perguntou Chi Yang. Ele estava sério.

“Talvez sobre alguma outra coisa que você tenha feito?”

“Eu mato. É isso que eu faço,” ele retrucou. “Eu mato para me alimentar e para me proteger, e às vezes apenas por diversão.”

“Você coleciona coisas,” eu o lembrei.

Ele bufou. “Sim, eu coleciono coisas. Coleciono armas e outros instrumentos letais. É temático.”

Ele era impossível! “E quanto à arte e os artefatos chineses? Você coleciona esses, também.”

“Não, essa sou eu,” disse Mai Li dando de ombros.

Eu desmontei de volta no encosto.

“Você tem uma coleção impressionante,” disse Jasper com a boca retorcendo-se de maneira familiar. Ele também achava que isso era divertido. Homens!

“Você só viu algumas das peças. Eu vou te levar até as seções inferiores, onde você pode ver a coisa toda. Eu sou um filho legítimo do grande Khan, e eu tenho um grande apreço por itens de batalha. Eu tenho várias peças únicas.” Chi Yang estava reluzente.

“Seria interessante, mas eu não tenho certeza se Alice gostaria de vê-las,” disse Jasper enquanto olhava para mim.

“Eu estava esperando levar Alice comigo,” interrompeu Mai Li rapidamente. “Tenho algumas coisas que ela pode achar mais interessante do que armas.”

Nem eu nem Jasper nos movemos.

“Oh, vamos lá, Alice. Você vai estar na mesma casa que Jasper, apenas no andar de cima comigo. Eu tenho algo para você,” ela quase deu risinhos de ansiedade.

“Seria interessante ver a coleção de Chi Yang,” Jasper deu a dica.

Está bem.

“Acho que os garotos podem se divertir sozinhos por um tempo,” eu concordei. Eu não estava contente com isso, mas realmente não poderia acontecer nada de ruim. Mai Li deu outro gritinho e eu me vi sendo arrastada para o lado da sala de estar e subindo uma escada de mogno ricamente talhada.

Jasper estava nos observando subir com um olhar muito intrigado no rosto.

Mai Li me puxou para um tipo de biblioteca. Estava repleta de livros e de rolos cilíndricos de que eu imaginei que fossem pergaminhos. O lugar tinha cheiro de especiarias e o aroma fresco de uma floresta tropical. Tudo aqui parecia ser muito antigo.

Ela apontou na direção de uma pilha de grandes travesseiros perto de outra mesa muito baixa.

“Sente-se. Eu tenho tanta coisa para te perguntar e para te falar. Oh! Estou simplesmente tão feliz por você!” Ela estava falando quase rápido demais até mesmo para mim, de tanta excitação. Eu a observei enquanto ela voava ao redor do cômodo, recolhendo itens de algumas estantes e tirando pergaminhos de uma mesa pequena e preta. Então ela se aproximou e soltou todos os itens menos um sobre a mesa. Ela me passou um pacote embrulhado num papel cheio de detalhes, dobrado como uma flor em volta do conteúdo.

“Mai-Li,” eu exclamei. “É lindo! É lindo demais para ser aberto.”

“Não seja boba,” ela disse com um sorriso malicioso. “Eu fiz esses para você. E para Jasper; bem, é para os dois.” Ela moveu seus dedos habilidosos sobre o pacote e a flor se abriu para mostrar um par de vestimentas de seda. Uma era branca e a outra vermelha, e o padrão dos bordados das duas era o mesmo, apesar de feitos na cor oposta. Eu os levantei para ver o que eram, e dois roupões de seda se desdobraram nas minhas mãos. A seda era incrivelmente suave em contato com os meus dedos. Eu exclamei de prazer.

“O branco é seu. Experimente!”

Eu rapidamente passei o roupão ao meu redor e senti o vigor gentil da seda que me engolfava. Ele chegava até o chão.

“Mesmo sendo tão macia, a seda não rasga como a maioria das roupas. É muito resistente, e essas vão durar muito tempo, se você e Jasper forem cuidadosos.” Ela parecia subitamente tímida. “É claro, vocês ainda não vão querer usá-los por alguns meses.” Ela disse rapidamente.

Eu a olhei intrigada.

“Nós somos muito brutos no começo,” ela sussurrou.

“Oh, não. Quero dizer, sim, mas não. Bem, sim, nós somos. Mas. Eu não saberia dizer. Ainda.” Eu estava gaguejando.

“Ele não te tomou como dele?”

Eu engoli minha primeira resposta. “Não. Ainda não. Nós acabamos de nos conhecer, Mai Li, e essas coisas levam tempo.”

“Não, para vampiros elas não levam,” ela bufou. “Ele está atraído por você, certo?”

“Sim, eu acho que sim.” Eu esperei que minha tristeza não transparecesse na minha voz.

Acha que sim? Ele te toca e permite que você o toque?”

“É claro, mas não daquele jeito. Pelo menos, ainda não.” Eu olhei ao redor do cômodo tentando encontrar uma maneira de fugir desta conversa que eu não podia acreditar que estava tendo.

“Se ele te deixa tocá-lo facilmente, então ele está atraído. Você tem alguma experiência?” ela perguntou bruscamente.

O quê?”

“Ou então ele?” ela pressionou.

“Mai Li, nós podemos falar sobre alguma outra coisa, por favor? Qualquer coisa? Onde você aprendeu a dobrar papel de presente daquele jeito?”

“Bela tentativa, mas não. Este é o motivo pelo qual eu te trouxe aqui. É sobre isso que nós precisamos falar. É por isso que eu fiz esses roupões para vocês.” Ela sorriu para mim orgulhosamente enquanto os tocava. Eu queria derreter e sumir no chão.

“Pare de me olhar desse jeito, Alice. Você é uma vampira madura, mas quando se trata de intimidades, há algumas coisas das quais você precisa estar ciente.”

“Mai Li, você é uma amiga muito boa, mas eu realmente não quero falar sobre intimidades com você. Ou com qualquer outra pessoa.” Eu me levantei e tentei sair, e ela me empurrou de volta para as almofadas. O chão chiou quando eu aterrissei.

Mai Li deu risinhos como uma garotinha e então desenrolou um rolo de bamboo na minha frente. “Você é tão engraçada!” ela riu.

“Eu estou sendo bem séria. Eu não quero falar sobre isso.”

“Oh, mas você precisa. Primeiro, você sabe que nós somos mais rápidos e fortes que humanos, o que torna as coisas mais interessantes e substancialmente mais perigosas para qualquer pessoa ou qualquer coisa nos arredores. Homens, em particular, são inacreditavelmente movidos pelas suas necessidades, então você…”

“Não. Não, não, não.” Eu cobri meus ouvidos e fechei os olhos, e comecei a assobiar.

As mãos suaves de Mai Li puxaram as minhas para longe da minha cabeça, e eu as coloquei de volta o mais rápido que pude. Eu podia ouvi-la deixando sua risada escapar enquanto tentava virar minhas mãos para soltá-las.

“Você é tão infantil!”

“Não sou! Eu só não quero ouvir isso de você.”

“Covarde!”

“Sim,” eu comecei a soltar risinhos junto com ela enquanto lutávamos.

“Você ainda não entende, Alice, e você precisa estar preparada. Pode durar dias, e podemos derrubar prédios inteiros em nossa paixão. Eu… só estou… te… falando… isso… como… ugh, você é forte… como sua… amiga. Ah ha!” Ela gorjeou de triunfo quando me prendeu num abraço de urso por trás. “Você está pronta para se comportar e escutar?”

“Eu passei anos no bando de Paul. Acredite em mim, eu sei. Gregório foi bem específico sobre a necessidade de materiais indestrutíveis.”

“Pare de se contorcer! Há muito mais coisas. Eu posso te ensinar tantas maneiras de amar Jasper que você vai ser capaz de brincar por anos. A eternidade é bastante tempo se você não é criativa.”

Eu parei de tentar escapar do agarrão dela. Ela tinha um ponto a respeito da criatividade e da eternidade.

“Você vai se comportar?” ela perguntou.

“Sim, mas só porque eu estou presa.”

“Bom. Agora, olha esse pergaminho. Era um pergaminho de treinamento para mim quando eu era garota,” ela disse enquanto passava os dedos gentilmente no delicado pergaminho. “Meu pai era um baixo aristocrata. Ele tinha nove filhas, e eu era a sétima. Casar a nós todas teria custado caro demais, então as cinco mais novas foram treinadas para serem concubinas. Esse é o mesmo pergaminho do qual eu aprendi.”

Seu rosto reluzia suavemente, enquanto o meu estava travado de choque.

“Uma concubina?

“Oh, sim, nós éramos todas muito bonitas, e era uma boa maneira de trazer à família dinheiro e poder.”

“Mas e quanto ao amor?”

“O que tem?”

“Você nunca quis encontrar um parceiro e amá-lo?” Pensar em Mai Li como uma concubina vendida era demais para mim.

“O amor não tinha nada a ver com o casamento na China, especialmente para as classes mais altas. Ainda não tem. Os pais ou as famílias escolhem com quem você vai casar, mas só se tiver dinheiro o suficiente envolvido. Com tantas filhas, meu pai não seria capaz de bancar encontrar maridos para todas nós, então ao invés disso ele nos treinou para sermos concubinas. Eu estudei por seis anos para aprender os alongamentos e as posições, e trouxe uma grande riqueza para a minha família quando fui vendida.”

“Mai Li, eu sinto muito.”

“Por quê?” Ela realmente não sabia.

“Porque você nunca teve a permissão de encontrar amor.”

Ela deu uma risada silenciosa. “Alice, eu encontrei o amor, e isso é muito melhor do que quase todas as outras mulheres na minha cidade conseguiram. Haviam poucas escolas e poucas coisas que as mulheres na China podiam fazer. Eu poderia ter me casado com um camponês e me mudado para uma fazenda, mas eu odeio galinhas. Eu poderia ter me casado com alguém que eu nunca tivesse nem ao menos conhecido, para que minha família pudesse assegurar um bom negócio. Eu poderia ter sido uma freira budista. Ou, eu poderia ser uma concubina. Na verdade não é tão ruim. Além do mais, o homem que me comprou era um mercenário Huno, e ele só me comprou para me adicionar ao seu harém. Quando Chi Yang o derrotou numa batalha, eu me tornei sua propriedade junto com as outras. Chi Yang me achou honorável e capaz de lutar, então eu me tornei sua concubina e depois sua parceira.”

Eu não podia imaginar viver daquela forma. Eu não podia imaginar não ter opções, e poucas esperanças de amar. Eu era subitamente muito grata pelas escolhas que me foram oferecidas. Os olhos de Mai Li deixavam escapar um pouco de sua tristeza.

“Eu realmente me saí bem, Alice. Por favor, não sinta pena de mim.”

Subitamente me dei conta de como meu silêncio devia fazer-lhe se sentir, e lentamente ofereci um sorriso.

“Então, esse era seu tipo de colégio?” Eu perguntei enquanto acenava em direção ao longo pergaminho.

“Sim, e eu era uma aluna muito boa,” ela deu um enorme sorriso.

“Eu aposto que suas aulas não eram nem de longe tão chatas quanto as minhas.”

Ela levantou as sobrancelhas e deu um sorriso torto.

Eu respirei fundo. OK, Alice, você consegue, eu pensei enquanto tentava superar a vergonha paralisante.

As letras no pergaminho eram pequenas, e acompanhadas por uma grande quantidade de rabiscos que eu não reconhecia. Eu respirei fundo novamente.

“Então, essas são as instruções?” Eu perguntei e minha voz partiu na última palavra.

“Sim, e essas são as ilustrações que as acompanham,” ela disse apontando para os rabiscos maiores.

“Ilustrações? Elas parecem manchas de tinta,” eu disse enquanto virava a cabeça para o lado. Talvez o pergaminho estivesse de ponta-cabeça.

“É uma pessoa; uma mulher para ser exata. Aqui está a cabeça e aqui estão as pernas,” ela explicou, apontando para a primeira ilustração.

“Não podem ser. Nem mesmo nossos corpos fazem isso. Um humano iria quebrar no meio se tentasse.” Eu virei a cabeça para o outro lado, mas ainda assim não podia ver nenhuma forma possível de se colocar as pernas naquela posição.

“Oh, eu te garanto, cada uma dessas posições é bem possível. Leva alguns meses, mas seu corpo pode sim se dobrar nessas posições. Na verdade, o alongamento nos torna mais difíceis de se quebrar em pedaços.”

Eu mal a ouvi enquanto as manchas de tinta lentamente começaram a assumir formas que desafiavam tanto a minha imaginação quanto as leis da física. Pior que o choque de saber do passado de Mai Li e pior do que saber a respeito do seu pergaminho, era a ideia de que isso supostamente envolvia Jasper. Eu estava inconscientemente balançando a cabeça numa eterna negação do que eu estava vendo.

Mai-Li tomou isso como uma recusa em acreditar nela.

“É muito fácil, Alice. Observe,” ela demandou. “Eu vou provar. Está vendo essa aqui?” Ela apontou para uma figura que lembrava a cabeça de um coelho. “Olhe, é fácil.” E com um sorriso, ela puxou as duas pernas estendidas por sobre a cabeça e assumiu a posição do coelho.

Senti meus olhos esbugalharem-se de horror enquanto agarrei um travesseiro, o apertei contra o meu rosto e gritei.

“Você já não tem mais idade para agir dessa forma,” rosnou Mai Li frustrada.

“Eu sempre pensei em você como a minha mãe,” eu protestei contra a almofada macia, que abafou minha voz.

“Isso é tão doce, Alice,” ela responde com prazer. “Entretanto, eu não sou a sua mãe. Eu sou sua amiga. E eu sou uma amiga boa o suficiente para te ensinar as maneiras de amar um vampiro.”

“A Lena sabe que você está fazendo isso?” Se ela soubesse, eu iria queimá-la.

“É claro. Ela queria estar aqui também para isso, mas eu pensei que seria demais se nós duas estivéssemos aqui.”

“Graças a Deus,” eu tive um calafrio com a ideia de Lena estar nesse cômodo. Pior ainda, Lena levar o que tinha visto de volta para Vasily e Ivan. Eu nunca teria sobrevivido a isso.

“Mai-Li, eu realmente não acho que nós estamos preparados para tudo isso,” eu disse espiando por cima da almofada. Ela ainda estava fazendo o negócio do coelho. “Jasper e eu estamos indo com calma, e isso é apenas um pouquinho demais.”

“Quando a hora chegar, não será calmo,” ela insistiu. A mulher se recusava a desistir.

“Foram necessários anos de treinamento para você aprender essas posições e para ser capaz de se esticar desse jeito,” eu tentei argumentar.

“Mas você já sabe dançar, e já é um tanto flexível. Além do mais, será mais rápido já que você é vampira.” Ela se desdobrou e se inclinou sobre mim. “Não é tão difícil quanto você pensa.”

Subitamente, eu fui arremessada de costas com um baque e minhas pernas se esticaram bem sobre a minha cabeça. Eu nem tive tempo de exclamar antes que o rosto sorridente dela estivesse abaixado olhando para mim.

“Esta é a primeira posição. Não é fácil?”

“Ah! Sai de cima de mim!” Eu gritei, apenas para ser virada ao contrário e dobrada para trás.

“Posição dois,” ela gorjeou alegremente.

Eu havia sido tão puxada, empurrada e dobrada que cada parte de mim doía. Nenhum ser humano poderia ser dobrado de tantas formas, mas ela prosseguiu, apesar de todas as minhas súplicas. Mai Li era implacável, e no meio da dor, tudo em que eu podia pensar era em como eu iria mata-la.

“Agora dobre-se para trás e sinta como sua barriga se alonga.”

Eu a rasgaria em pedacinhos.

“Pare de resistir contra mim e deixe seu corpo se alongar!”

Pedacinhos bem pequenininhos. Lentamente.

“Este é o último alongamento, pare de resistir e nós podemos seguir para os óleos.”

Então eu espalharia seus pedacinhos por um campo.

“Se você conseguir aprender isso, vai ser muito mais difícil te partir em pedaços. Essas posições não só trazem prazer, como te tornam uma lutadora melhor.”

Então eu iria regar o campo com gasolina.

“Só mais um pouquinho… você está quase lá!”

Meu sorriso se alargou enquanto eu imaginava o grande PUFF quando eu acendesse o fogo no campo.

“Ai! Mai-Li, eu vou quebrar no meio!”

“Está bem.” Ela saiu de cima das minhas pernas, e eu lentamente me dobrei para a frente e fiquei deitada de cara com o chão enquanto tentava me certificar de que todas as minhas partes e pedaços funcionavam. Ela havia terminado com a posição quarenta e dois, na qual você deita no chão e puxa a cabeça para trás o suficiente para tocar as costas. Eu não fazia ideia do porquê. Eu me recusava a entender o porquê.

“Eu só queria te mostrar alguns dos óleos e ervas que encontramos,” ela gargarejou enquanto trazia uma bandeja com um forte aroma. “Sente-se!”

Eu rosnei alto.

“Está bem, deite-se de bruços,” e ela colocou o dedão do pé embaixo de mim e me fez girar.

“Eu quero te matar. Você sabe disso, né?”

Ela riu. “Você é tão engraçada. Acredite em mim, você vai me agradecer mais tarde.”

Fiz uma careta quando percebi que eu havia pensado a mesma coisa quando levei Jasper para fazer compras apenas dois dias atrás.

Eu me sentei e coloquei a cabeça entre os joelhos. Eu nunca havia sido puxada e empurrada e esticada daquele jeito, e meu corpo de cristal estava doendo em resposta.

“Você se saiu muito bem mesmo, Alice. Você não faz idéia do quão travados muitos de nossa espécie são, mas você se dobra bem.” Eu a ouvi amassar alguns papéis, e levantei os olhos para ver que ela havia embrulhado os roupões novamente e que um segundo pacote ao lado. Então, olhei para a bandeja. Estava coberta com uma dúzia de pequenas vasilhas, cada uma cheia com um óleo ou um mix de ervas de cheiro forte.

“Esses óleos não fazem nada para a sua pele, é claro, mas eles tornam as coisas prazerosamente escorregadias…”

Eu teria que matar Chi-Yang também, claro, porque ele não iria gostar que eu a partisse em pedaços.

“…e as pimentas no óleo adicionam uma gostosa sensação de formigamento…”

Eu esperava que Jasper não fosse ficar bravo demais, mas de jeito nenhum ela poderia sobreviver. Ela poderia contar para Ivan e Vasily.

“… pétalas devem ser deixadas no óleo por alguns meses, mas o aroma compensa a demora…”

Ou, eu poderia simplesmente matar a todos e apenas acabar com tudo. Era isso. Assim resolveria tudo.

“… não recomendo azeite de oliva porque o cheiro fica ruim depois de um tempo…”

Subitamente sua tagarelice foi interrompida por um forte baque, e vários pergaminhos caíram da estante do outro lado da sala.

“Oh, que bom, os rapazes estão brincando,” ela sorriu. Houve outro ruído de quebra vindo de baixo, e um vaso bambeou ameaçando cair.

“Brincando?

“Certamente. Chi-Yang estava se coçando para desafiar seu Jasper e ver como ele luta.”

Eu engoli contra o pânico que estava crescendo dentro de mim. “Eles estão lutando?” Eu gritei.

Outro baque gigantesco derrubou mais dois pergaminhos. Mai-Li foi até a porta e gritou uma sequência de palavras em chinês com uma voz massiva, que não combinava com sua estatura delgada.

“É melhor a gente ir,” ela suspirou com tristeza. Eu levantei num salto, aliviada, e então desejei não ter feito isso. Eu juro que aquela mulher havia me quebrado em algum lugar.

Ela recolheu os dois embrulhos de papel e me passou o que continha os roupões. Então ela começou a descer os degraus com pressa.

“Mai-Li,” eu chamei e ela derrapou até parar. “Por favor, por favor não conte a Jasper sobre o que nós conversamos.”

Ela deu uma risadinha. “Ok. Não vou, mas você precisa saber que Chi-Yang teve a mesma conversa com Jasper.” Então ela disparou a toda velocidade escada abaixo.

“O QUÊ?” eu rosnei e disparei atrás dela.

Eu me atirei escadas abaixo atrás de sua figura risonha. Eu estava correndo tão rápido que quase me choquei com uma massa de braços e pernas que se contorcia.

“Alice!” disse a cabeça de Chi-Yang, que estava no fundo da massa. Subitamente, o monte se desenroscou, e Jasper e Chi-Yang estavam em pé vestindo o que pareciam ser pijamas pretos totalmente desarrumados. Chi-Yang estava sorrindo. O rosto de Jasper era uma massa contorcida de emoção. Seus olhos estavam arregalados quando ele olhou para mim e então ele limpou a garganta e olhou para o chão.

Eu podia imaginar o que Chi-Yang havia conversado com ele.

Não, eu não podia. Eu não iria.

Nós apenas ficamos parados lá por alguns segundos, paralisados em nossos lugares, até que Mai-Li deu mais uma risadinha. Eu olhei feio para ela e para Chi-Yang, e ele piscou para mim.

Ah, sim, ele precisava morrer.

“Eu estava apenas mostrando a Jasper alguns movimentos. Ele é um lutador muito, muito bom. Eu estou impressionado. Você quer ficar e assistir? Ou talvez você queira lutar contra Mai-Li?”

“Nós já o seguramos por bastante tempo, Chi-Yang, e talvez eles estejam querendo algum tempo sozinhos,” sugeriu Mai-Li.

“Não.” Jasper e eu dissemos ao mesmo tempo. Nós nos olhamos de relance, e então desviamos o olhar.

“Eu gostaria de continuar praticando,” disse Jasper por fim.

“Enfrentar Mai-Li parece divertido para mim,” eu disse entredentes. Ela veio até mim e me passou um pijama preto como os que os rapazes estavam vestindo, e então me apontou um cômodo onde eu poderia me trocar. Ah, sim. Enfrentar Mai-Li era exatamente o que eu precisava.

Ela era uma oponente ágil e frustrantemente boa. Eu consegui aplicar alguns bons movimentos nela, mas nunca consegui acertar um golpe bom e mortal. Após várias horas de luta, a raiva e a vergonha haviam começado a desaparecer, e eu comecei a me divertir com nossas batalhas. Entretanto, eu iria encontrar uma maneira fazê-los pagarem. De algum jeito.

Algum dia.

Agora era domingo de manhã, uma hora antes do nascer do sol. Chi-Yang estava revivendo algumas de suas maiores batalhas, e Jasper e eu estávamos escutando atentamente. Ele havia voltado a segurar minha mão, mas nós ainda evitávamos o contato visual direto.

Eu estava tão envolvida na história de Chi-Yang que nem tive uma visão antes do telefone tocar. Quando Mai-Li atendeu, todos nós ouvimos a voz de Ivan nos cumprimentando audivelmente.

“Se divertindo?” ele quase gritou. Meu estômago revirou enquanto eu me dava conta de que ele sabia exatamente com o que o casal chinês nos havia torturado a noite passada.

“Ugh, Ivan, pare de gritar,” cuspiu Mai-Li.

“Desculpe. Eu estava me perguntando o que vocês estão planejando para hoje à tarde.”

“Nada demais,” Mai-Li olhou para o seu parceiro e deu de ombros. “Chi-Yang quer sair atrás de alguns irlandeses que estão trabalhando na estrada esta noite. Nós íamos convidar Alice e Jasper para irem conosco.”

“Só o Jasper,” lembrou Chi-Yang.

“Será que alguns deles não têm ovelhas?” indagou Mai-Li. Ela então olhou para mim. “Você gosta de ovelhas?”

Jasper deu um risinho, e eu franzi o nariz e balancei a cabeça. Ovelhas eram nojentas.

“Só o Jasper,” Mai-Li repetiu no telefone.

“Hoje está chovendo, e um novo filme acabou de estrear. É um suspense chamado ‘Ele Andava De Noite’. Poderia ser divertido.”

“Ah sim,” concordou Chi-Yang com a cabeça.

Mai-Li deu outro risinho. “Oh, seria perfeito. Então nós poderíamos depois. E quanto a Alice?”

Sim, e quanto à mim? Eu me vi caçando um pequeno cervo e depois voltando para a cidade ao amanhecer. Não havia chamas. Eu relaxei e comecei a pensar que uma caçada poderia ser bem útil. “Não se preocupem comigo, eu vou caçar do meu jeito, e então encontro vocês aqui de novo.”

“Eu não quero que você vá sem mim,” disse Jasper rapidamente.

“Você está comendo animais, também?” engasgou Mai-Li.

“Não. Eu só não quero que ela vá sozinha.”

Meu coração estava partido. Eu queria ele comigo, mas se ele não ia comer animais, então seria melhor que ele comesse com os outros. Além do mais, depois de hoje, eu não tinha certeza de que já estava preparada para ficar sozinha com ele. As posições de Mai-Li estavam começando a fazer sentido para a minha agora muito ativa imaginação. Mulher pentelha.

“Vá com eles. Vai levar algumas horas, e então nós podemos nos encontrar de novo antes do nascer do sol,” eu disse o mais alegremente que pude.

Jasper baixou os olhos para mim e apertou os lábios. Ele não queria me deixar. Eu senti uma explosão familiar de alegria.

“Nós vamos encontrar os outros para a matinê e decidimos depois,” declarou Mai-Li.

Eu ia caçar. Sozinha. A ideia me encharcou de medo, e eu mal ouvi Mai-Li juntar o resto das informações e finalizar nossos planos. Eu ficaria sozinha pela primeira vez desde que havia encontrado Jasper. Eu não tinha certeza de que poderia suportar.

“Bem, onde eu estava?” Chi-Yang interrompeu meus pensamentos. Ele continuou com suas histórias por mais algumas horas até que Mai-Li e eu o forçamos a parar para que nós pudéssemos nos aprontar para sair.

Quando íamos saindo, Mai-Li nos chamou de volta e me entregou os dois pacotes enfeitados com flores.

“O que são esses?” perguntou Jasper.

“Presentes nossos para vocês,” sorriu Mai-Li. “Abra-os.”

Jasper parecia perplexo com as dobraduras de flores, então Mai-Li as desfez para ele. Os dois roupões afloraram para fora, e eu tive que morder meu lábio quando seus olhos se arregalaram. Por um instante eu pensei em pegá-los e sair correndo. Eu não precisava que Jasper tivesse nenhuma ideia sobre o que Mai-Li e eu havíamos discutido.

“Eles são adoráveis,” disse Jasper rigidamente enquanto Mai-Li redobrava a flor. Eu me encolhi de vergonha. Ele sabia. “O que tem no outro?”

“Também é um presente que eu preparei para Alice,” disse Mai-Li enquanto seus dedos ágeis abriam o outro pacote. Na mão de Jasper estava um pergaminho de bambu e vários vasilhames com óleo. Uma onda de puro pânico me inundou, e eu imediatamente arranquei o papel das mãos de Jasper.

“Isso é para mim,” eu disse entredentes. Mai-Li soltou um risinho.

Jasper apenas me encarou enquanto eu enrolava o pergaminho e os óleos e os apertava contra o meu peito. Por mais que eu estivesse horrorizada com a idéia de que Jasper pudesse ver o que havia no pergaminho, eu realmente não queria destruir o presente deles. Eu estava começando a enxergar as possibilidades oferecidas naquele papel enrolado.

Agarrei o outro pacote, lancei um olhar fuzilante para a sorridente Mai-Li, e rapidamente fui até o porta-malas do meu carro para guarda-los ali em segurança. Jasper estava logo atrás de mim.

“Então, você quer me contar o que foi aquilo?”

“Não.” Pai do céu, não.

Ele parecia como se quizesse dizer algo a mais, mas sua boca apenas se virou no seu sorriso torto, e ele foi abrir a porta pra mim.

Nós não falamos nada no caminho até o cinema, mas a boca de Jasper continuou retorcida por todo o caminho.

Jasper era uma pilha de nervos quando nós chegamos ao cinema.

“Essa é a primeira vez em que eu fico com tantos humanos,” ele sibilou inseguro. “Eu nunca estive num desses cinemas,” ele disse enquanto entrávamos e escolhíamos os lugares no balcão.

“Nunca?”

Ele balançou a cabeça e olhou ao redor admirado, mas ele estava segurando a minha mão com toda a força, e eu a cobri com a outra mão para ajudá-lo a manter a dele ali. Por sorte, o cinema tinha um balcão que estava livre e era perfeito para as nossas necessidades. O filme não estava tão cheio a ponto de alguém sentar perto de nós, então ele permaneceu vazio, apesar de alguns casais subirem para olhar. Para aproveitar o filme, nós precisávamos ficar acima dos humanos.

“Mesmo, Jasper?” perguntou Ivan. “Eu amo filmes, especialmente os assustadores.”

“Ele nunca os assiste na verdade. Ele gosta de brincar com os humanos,” sussurrou Vasily do meu outro lado.

“O que isso significa?” perguntou Jasper.

Eu dei um risinho. “Espere até as luzes se apagarem.” Eu o instruí.

Nós ficamos sentados em silêncio até que as luzes diminuíssem e as familiares listas pretas e brancas começassem a descer pela tela. Ivan estava quase dando pulinhos e trocava constantemente de posição ao meu lado. Jasper estava tão tenso que estava completamente imóvel e rígido até o filme começar. Ele estava dividido entre observar os russos e prestar atenção nos créditos de abertura na tela. As imagens passando rápido venceram, e eu observei enquanto ele sentava imerso na história que se desdobrava na frente dele. Era tão estranho pensar que esse era o seu primeiro filme. Eu já podia dizer que o filme seria apenas marginalmente bom, mas eu sabia que assistir os vampiros compensaria tudo.

Se Vasily não perdesse o controle. Em geral, nós fazíamos isso à noite só para o caso de ele escorregar.

Eles esperaram até a música começar um crescendo de suspense, e então os vampiros foram ao trabalho. No escuro do cinema, cada um deles saltou pra trás de um casal ou de um grupo e soltou um rosnado baixo ou sibilou. Quando os humanos assustados se viravam, os vampiros estavam de volta sentados recatadamente em seus lugares. Na primeira vez em que isso aconteceu, Jasper engasgou, mas então ele entendeu o jogo e balançou de tanto rir em silêncio, até sua cadeira ranger em protesto.

Cada vez que o enredo do filme se intensificava, os outros entravam no modo susto. Eles saltariam para baixo como uma praga de gafanhotos, sibilariam ou rosnariam, e pulariam de volta para os seus lugares tão rápido que até mesmo eu mal podia vê-los. Eu não conseguia imaginar como os humanos deviam se sentir, mas os rostos deles me davam uma bela idéia. Jasper estava sorrindo escancaradamente, apesar de estar longe de estar relaxado. Após quarenta e cinco minutos, uma garota para quem eles haviam sibilado duas vezes explodiu em lágrimas e implorou para que seu companheiro a levasse para a casa. Ela saiu apoiando-se com força no homem magro que a havia trazido. Ela levantou os olhos e nos lançou um olhar sinistro, mas ainda assim cheio de medo, enquanto saía. Nossa fileira inteira se dobrou de rir até que um parafuso se soltasse da base de uma das cadeiras.

No final da sessão de duas horas, o medo na plateia era palpável. Os humanos permaneceram congelados em seus assentos por um instante, então dois homens jovens dispararam até a saída. A atitude deles liberou o fluxo, e o cinema inteiro correu para as portas a toda velocidade, vários homens arrastando suas acompanhantes atrás deles.

Os humanos remanescentes no lobby do cinema voaram atrás de cobertura enquanto nós sete saímos rindo até a saída e para a chuva que caía no início da noite.

Então, a realidade da minha escolha de presa veio me atropelando.

“Você tem certeza de que não quer vir conosco?” a pergunta de Lena foi baixa.

“Eu não quero mudar minha dieta agora, obrigada,” eu disse com firmeza tanto para mim mesma quanto para ela. Eu não podia desistir dessa parte de mim. Não agora.

“Eles têm galinhas,” ofereceu Vasily dando de ombros. Eu rolei os olhos para ele.

“Então eu vou ficar com você,” disse Jasper. Olhei dentro dos seus olhos, que estavam agora começando a ficar pretos ao redor da íris.

“Jasper, você precisa comer para não cometer nenhum erro. Vai levar mais tempo até eu conseguir pegar minha presa.” Eu lutei contra o aperto no meu peito enquanto falava o resto. “Você devia ir com eles e caçar e se divertir.Vou voltar antes do amanhecer.” Eu já havia visto isso duas vezes agora.

“Não,” disse Jasper, mas eu podia dizer que ele estava dividido.

“Venha conosco, Jasper,” apressou Chi-Yang. “Acredite, você não vai querer comer com ela. Você vai estar de novo com ela em pouco tempo. Além disso, nós temos muita coisa para te mostrar.”

Jasper não se moveu, o que era bom porque eu não queria que ele se movesse. Eu senti minhas duas metades, a Alice boa e a vampira assassina, começando uma batalha pela minha mente. Eu nem mesmo tinha certeza de que conseguiria partir, e a vampira que eu havia estado mantendo quieta por tanto tempo rugia com sua força recém-descoberta.

“Se Alice diz que vai estar de volta, ela vai. Ela sabe dessas coisas. Você sempre pode confiar nela quando ela tem aquele tom de voz,” declarou Vasily.

Algo no que ele disse fez Jasper enrijecer. Ele olhou para mim, dividido de novo, mas resoluto. Ele iria com eles enquanto eu caçava na floresta.

A vampira gritou em protesto.

“Sim, talvez eu vá com vocês,” ele disse enquanto lançava seu meio-sorriso para mim. Eu segurei o fôlego. Ele parecia triste.

“Te vemos em breve, Alice,” disse Ivan enquanto eles se viravam e caminhavam para longe de mim. A aparência de Jasper estava atormentada enquanto ele se virou para seguir os outros. Foi preciso dar tudo de mim para não me unir a eles. Minha necessidade por sangue e minha necessidade por Jasper eram tão fortes. Eu fechei os olhos e deixei a batalha irromper, mal me segurando à pessoa dentro de mim.

Um único humano não era uma perda grande demais comparado a assistir Jasper ir embora, era?

Eu odiava a resposta. Odiava que eu tivesse até mesmo perguntado isso.

Eu me virei com um grande esforço e dirigi de volta para casa. Uma vez lá, eu coloquei uma roupa de caçada, e corri da cidade numa busca desesperada por uma área livre de humanos e cheia de presas. Na costa leste, onde os humanos eram tão abundantes, nenhuma das duas coisas era fácil de encontrar.

Eu pretendia caçar qualquer coisa que conseguisse encontrar, mas, partindo de Nova York, isso exigiria pelo menos uma hora de corrida. Comecei a correr o mais rápido que conseguia, para que pudesse terminar depressa e voltar para Jasper, mas descobri que não poderia manter aquela velocidade. Cada passo que eu dava me acertava com uma pequena pontada de dor. Cada pequena pontada se acumulava à anterior, de forma que a dor aumentou até minhas pernas desacelerarem e eu ser forçada a parar. Era como se um elástico estivesse amarrado ao meu redor e estivesse se esticando a cada passo que eu dava. A dor e a pressão eram simplesmente demais. Passei os braços ao redor do peito e tentei me acalmar, e chegar num acordo com a dor. Ela era paralisante.

Como os outros conseguiam deixar um ao outro?

Sentei-me nas raízes de uma grande árvore e respirei profundamente. Eu estava esperando amenizar a dor, e talvez encontrar algum rastro. A dor não diminuiu, mas também não cresceu. Eu não encontrei nenhum rastro no ar nos arredores e precisaria partir em breve, mas ainda não conseguia me forçar a me mover. Ao invés disso, eu procurei intensamente no futuro próximo para ver Jasper. Talvez uma visão pudesse acalmar meus nervos e afrouxar o elástico de dor que parecia estar esmagando o meu peito.

Jasper surgiu na minha mente rápido e com facilidade. Mesmo numa visão, seu rosto me acalmava, e eu relaxei. Eu o vi em posição de caçada. Fui mais fundo. Ele estava rindo e brincando de lutar contra Vasily, sob a luz fraca de uma lua coberta por nuvens. Olhei novamente, só para ter certeza, e a visão final era dos vampiros, um em cada arranha-céu em Manhattan, atirando pequenas bolas brancas no outro tão rápido que elas eram meros borrões brancos. Seria realmente uma boa noite para ele.

O elástico ao meu redor se afrouxou, e meu humor melhorou. Ele estava seguro e feliz, e eu podia agora caçar rapidamente e livre de preocupações.

Corri para o norte, procurando por qualquer cheiro que pudesse me alimentar. Encontrei um bando de cervos ao sul de Albany, mas ele era pequeno, e eu só me alimentei de um. Decidi dirigir-me até os arredores do lago ao norte para encontrar um bando maior, ou talvez um alce ou um urso. Eu queria ficar cheia o suficiente para que não precisasse caçar por um tempo. Depois de apenas duas horas, dei de cara com um grande alce, e o derrubei rapidamente. Eu desfrutei do sangue quente enquanto sentia meu estômago se encher.

Meu humor melhorou instantaneamente, e ficou quase alegre. O alce seria o suficiente para mim, e eu podia agora voltar para Jasper. Percebi com uma onda de prazer que eu poderia vê-lo dentro de só mais algumas horas. É claro, eu precisaria tomar banho e me trocar antes, para que não estivesse fedendo a alce.

Sentindo-me muito melhor com relação ao mundo, eu comecei a fazer o caminho de volta quanto detectei um aroma suave, porém deliciosamente familiar. Lobos. Eu amava lobos. Na verdade eu estava cheia demais para isso, mas decidi caçar só por mais alguns minutos para ver se conseguia pegar o jovem macho que eu havia farejado.

Não levou muito tempo. Eu segui seu rastro e descobri que o macho havia encontrado minha primeira presa e estava devorando ele mesmo o alce caído. Eu vim por trás dele e o derrubei num salto, desfrutando da doçura de seu sangue de carnívoro. Assim que terminei e me sentei novamente, a visão minha retornando à cidade ao amanhecer preencheu minha mente e então mudou para mim retornando à noite.

Sem brincadeira, eu pensei sarcasticamente. A caçada esta noite havia corrido bem.

Mas algo na lembrança da visão prendeu minha atenção. Algo estava errado. Muito errado. Eu observei a visão novamente e parei de respirar.

Desta vez, meu rosto estava diferente. Desta vez, meu rosto estava em agonia.

Eu sentei de novo, mas não conseguia sentir a terra sob mim. Senti como se estivesse caindo. Eu tentei agarrar o chão ao meu redor para evitar minha queda enquanto eu procurava desesperadamente com cada parte da minha mente para ver o que tinha acontecido.

Com uma claridade devastadora, uma segunda visão me atingiu, e eu vi o que havia de errado.

Era perfeitamente claro. Absoluto. Inalterável.

Jasper estava correndo da cidade enquanto meus gritos o seguiam.

Estava se tornando realidade.

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